Saturday, August 22, 2015

A aparência de Shakespeare

Pedro J. Bondaczuk

A fisionomia de William Shakespeare é um dos tantos mistérios que cercam essa figura enigmática. Como tudo o que se refere a ele, é, também, questão que gera ácidas polêmicas que não têm fim. Volta e meia anunciam-se descobertas de supostos retratos dele, pintados por algum determinado pintor, anúncio que é imediatamente desmentido, ou contestado ou posto em dúvida por muitos. Quanto mais o tempo passa, mais aumenta a curiosidade das pessoas sobre como ele era. O próprio Shakespeare, em um dos sonetos dedicados à não menos enigmática e misteriosa “Dark Lady”, dá uma dica de como era sua aparência, ao afirmar que era “um homem de meia idade e meio calvo”. Mas saber, saber de fato qual era sua fisionomia – mesmo admitindo que a pintura recém descoberta na mansão do Duque de Chandos, que os peritos da National Portrait Gallery atestam serem, mesmo, do mítico poeta e dramaturgo – ninguém sabe. Creio que jamais se saberá.

Nossa civilização atual, dados os incríveis avanços da tecnologia, pode ser classificada de “multimídia”. Capta, com a maior facilidade, pessoas, paisagens e tudo o que há, instantaneamente, “congelando-os” no tempo, perpetuando-os, não somente em imagens, mas também em sons e cores. Só faltam, mesmo, os cheiros, os odores para a captação ser perfeita. Não se depende, pois, como se dependia até um passado não muito remoto (a fotografia, por exemplo, só foi descoberta na segunda década do século XIX), da capacidade descritiva de algum observador arguto para nos dar pálida idéia de como eram (e  como são) pessoas, coisas, lugares, acontecimentos etc. Se Shakespeare fosse vivo, hoje, com toda certeza algum de seus inúmeros admiradores já teria feito uma “selfie” com ele e postado no Facebook.

Certamente, alguém gravaria um vídeo com ele e todos conheceriam, em um piscar de olhos, não apenas como ele era, mas também o timbre de sua voz, o nível de sua representação como ator, seu estilo de se trajar e coisas assim. Isso sem falar na possibilidade dele aparecer na televisão. Mas no tempo em que ele viveu, isso, obviamente, era impossível e rigorosamente inimaginável. As pessoas comuns, aliás. não se preocupavam com imagens, próprias ou de terceiros, já que seus retratos somente seriam possíveis caso contratassem algum pintor para fazê-los. E isso não era coisa barata, muito pelo contrário. Esse tipo de “fotografia” só era acessível a quem tivesse bastante dinheiro e muito poder, o que não era o caso de Shakespeare. No seu tempo, e até época relativamente recente, os artistas de teatro, ou de circo, não eram sequer tidos em boa conta. Eram, socialmente, considerados vagabundos, pessoas inferiores, de má conduta, sem eira e nem beira, quando não párias.

Daí considerar improvável que o hoje celebrado poeta e dramaturgo tivesse contratado algum pintor para perpetuar sua imagem em tela. Ou que tivesse convencido algum artista a fazê-lo sem remuneração, como mero favor, o que é menos provável ainda. Ademais, esses retratos pintados raramente condiziam com a verdadeira aparência dos retratados. Dependia exclusivamente do talento, da perícia, da capacidade de observação e da exatidão do pintor. Essa gravura que vemos, com freqüência, ilustrando livros de Shakespeare e matérias de jornais e revistas a seu respeito, afirmo, sem receio de errar, não condiz com o que ele de fato era. É fruto da imaginação de quem a pintou. E como ele era? Era baixo ou alto? Cabeludo ou careca? Barbudo ou de rosto liso? Tinha olhos azuis, negros ou castanhos? Ninguém, a não ser quem conviveu com ele, nunca soube e creio que jamais saberá.

E isso é importante? Para mim, é indiferente. Valoriza ou desvaloriza sua obra? Claro que não! Não passa de mera curiosidade de uma geração obcecada por imagens, sons e que anseia até mesmo arquivar cheiros do passado, que é o que ainda falta. Eça de Queiroz, implacável e ácido crítico do comportamento social do seu tempo, escreveu contundente texto sobre a obsessão de seus contemporâneos pelos avanços da tecnologia que, no seu entender, tornava as pessoas arrogantes e implacáveis. Escreveu: “A complicada abundância da nossa civilização material, as nossas máquinas, os nossos telefones, a nossa luz elétrica, tem-nos tornado intoleravelmente pedantes: estamos prontos a declarar desprezível uma raça, desde que ela não saiba fabricar pianos de Erard; e se há algures um povo que não possua como nós o talento de compor óperas cômicas consideramo-lo ipso facto votado para sempre à escravidão...”. Note-se que no seu tempo, fins do século XIX (ele morreu em 1900), os avanços tecnológicos sequer eram tão grandes, como seriam nos anos subsequentes.

O retrato, pretensamente de Shakespeare, encontrado recentemente na mansão do Duque de Chandos (que especialistas da National Portrait Gallery juram, por todas as juras que é mesmo do poeta e dramaturgo) é, de fato dele? Tenho sérias dúvidas. Aliás, a intuição me diz que não é, apesar de ter sido pintado por John Taylor, que além de pintor, era também ator e amigo do bardo de Stratford-Upon-Avon. Ademais, admitindo que a intenção do retratista fosse a de retratar essa figura hoje mítica (no que não acredito), quem pode garantir que foi fiel na reprodução do modelo? Eu não juraria que Shakespeare era do jeito que aparece no quadro. Enfim...


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