A aparência de
Shakespeare
Pedro
J. Bondaczuk
A fisionomia de William
Shakespeare é um dos tantos mistérios que cercam essa figura enigmática. Como
tudo o que se refere a ele, é, também, questão que gera ácidas polêmicas que
não têm fim. Volta e meia anunciam-se descobertas de supostos retratos dele, pintados
por algum determinado pintor, anúncio que é imediatamente desmentido, ou
contestado ou posto em dúvida por muitos. Quanto mais o tempo passa, mais
aumenta a curiosidade das pessoas sobre como ele era. O próprio Shakespeare, em
um dos sonetos dedicados à não menos enigmática e misteriosa “Dark Lady”, dá
uma dica de como era sua aparência, ao afirmar que era “um homem de meia idade
e meio calvo”. Mas saber, saber de fato qual era sua fisionomia – mesmo
admitindo que a pintura recém descoberta na mansão do Duque de Chandos, que os
peritos da National Portrait Gallery atestam serem, mesmo, do mítico poeta e
dramaturgo – ninguém sabe. Creio que jamais se saberá.
Nossa civilização
atual, dados os incríveis avanços da tecnologia, pode ser classificada de “multimídia”.
Capta, com a maior facilidade, pessoas, paisagens e tudo o que há,
instantaneamente, “congelando-os” no tempo, perpetuando-os, não somente em
imagens, mas também em sons e cores. Só faltam, mesmo, os cheiros, os odores
para a captação ser perfeita. Não se depende, pois, como se dependia até um
passado não muito remoto (a fotografia, por exemplo, só foi descoberta na
segunda década do século XIX), da capacidade descritiva de algum observador
arguto para nos dar pálida idéia de como eram (e como são) pessoas, coisas, lugares,
acontecimentos etc. Se Shakespeare fosse vivo, hoje, com toda certeza algum de
seus inúmeros admiradores já teria feito uma “selfie” com ele e postado no
Facebook.
Certamente, alguém
gravaria um vídeo com ele e todos conheceriam, em um piscar de olhos, não
apenas como ele era, mas também o timbre de sua voz, o nível de sua
representação como ator, seu estilo de se trajar e coisas assim. Isso sem falar
na possibilidade dele aparecer na televisão. Mas no tempo em que ele viveu,
isso, obviamente, era impossível e rigorosamente inimaginável. As pessoas
comuns, aliás. não se preocupavam com imagens, próprias ou de terceiros, já que
seus retratos somente seriam possíveis caso contratassem algum pintor para
fazê-los. E isso não era coisa barata, muito pelo contrário. Esse tipo de
“fotografia” só era acessível a quem tivesse bastante dinheiro e muito poder, o
que não era o caso de Shakespeare. No seu tempo, e até época relativamente
recente, os artistas de teatro, ou de circo, não eram sequer tidos em boa
conta. Eram, socialmente, considerados vagabundos, pessoas inferiores, de má
conduta, sem eira e nem beira, quando não párias.
Daí considerar
improvável que o hoje celebrado poeta e dramaturgo tivesse contratado algum
pintor para perpetuar sua imagem em tela. Ou que tivesse convencido algum
artista a fazê-lo sem remuneração, como mero favor, o que é menos provável
ainda. Ademais, esses retratos pintados raramente condiziam com a verdadeira
aparência dos retratados. Dependia exclusivamente do talento, da perícia, da
capacidade de observação e da exatidão do pintor. Essa gravura que vemos, com
freqüência, ilustrando livros de Shakespeare e matérias de jornais e revistas a
seu respeito, afirmo, sem receio de errar, não condiz com o que ele de fato
era. É fruto da imaginação de quem a pintou. E como ele era? Era baixo ou alto?
Cabeludo ou careca? Barbudo ou de rosto liso? Tinha olhos azuis, negros ou
castanhos? Ninguém, a não ser quem conviveu com ele, nunca soube e creio que
jamais saberá.
E isso é importante?
Para mim, é indiferente. Valoriza ou desvaloriza sua obra? Claro que não! Não
passa de mera curiosidade de uma geração obcecada por imagens, sons e que
anseia até mesmo arquivar cheiros do passado, que é o que ainda falta. Eça de
Queiroz, implacável e ácido crítico do comportamento social do seu tempo,
escreveu contundente texto sobre a obsessão de seus contemporâneos pelos
avanços da tecnologia que, no seu entender, tornava as pessoas arrogantes e
implacáveis. Escreveu: “A complicada abundância da nossa civilização material,
as nossas máquinas, os nossos telefones, a nossa luz elétrica, tem-nos tornado
intoleravelmente pedantes: estamos prontos a declarar desprezível uma raça,
desde que ela não saiba fabricar pianos de Erard; e se há algures um povo que
não possua como nós o talento de compor óperas cômicas consideramo-lo ipso
facto votado para sempre à escravidão...”. Note-se que no seu tempo, fins do
século XIX (ele morreu em 1900), os avanços tecnológicos sequer eram tão
grandes, como seriam nos anos subsequentes.
O retrato,
pretensamente de Shakespeare, encontrado recentemente na mansão do Duque de
Chandos (que especialistas da National Portrait Gallery juram, por todas as
juras que é mesmo do poeta e dramaturgo) é, de fato dele? Tenho sérias dúvidas.
Aliás, a intuição me diz que não é, apesar de ter sido pintado por John Taylor,
que além de pintor, era também ator e amigo do bardo de Stratford-Upon-Avon.
Ademais, admitindo que a intenção do retratista fosse a de retratar essa figura
hoje mítica (no que não acredito), quem pode garantir que foi fiel na
reprodução do modelo? Eu não juraria que Shakespeare era do jeito que aparece
no quadro. Enfim...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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