A polêmica musa de
Shakespeare
Pedro
J. Bondaczuk
Os poetas (alguns) não
raro elegem uma “musa” específica, para eles especialíssima, uma mulher que dão
a entender que seja o suprassumo da perfeição e da beleza da cabeça aos pés, à
qual dedicam parte ou, em casos extremos, até a totalidade dos poemas que
compõem ao longo da vida. Nem é preciso pensar muito para lembrar exemplos
desse procedimento. Cito, de memória, os casos dos clássicos da arte poética
como Torquato de Tasso (Leonor), Horácio (Lívia), Dante Alighieri (Beatriz),
Luís de Camões (Catarina), Ovídio (Corina), Propércio (Cíntia), Catulo
(Lésbia), Tíbulo (Délia) e vai por aí afora. Algumas dessas mulheres
inspiradoras e apaixonantes de fato existiram (posto que, óbvio, sem as
virtudes que seus delirantes amantes lhes atribuem). Outras tantas (a
maioria?), todavia, são meras fantasias, produtos de imaginação febril que raia
ao delírio à procura de uma paixão concreta, posto que ideal.
Até poetas menores
(entre os quais me incluo), elegem suas musas (quando elas de fato existem) ou
“constroem-nas”, quando frutos da fantasia. Alguns revelam seus nomes, que
repetem, poema após poema. Outros conservam o mistério, declinando, apenas, as
características que lhes agradam ou que supõem (ou desejam) que elas tenham. No
meu caso, para não ficar em cima do muro, nomeio minha inspiradora apenas como
“Doce amada”. Outros poetas, porém, não dão nem mesmo essa vaga indicação,
criando um clima de mistério que não raro permanece insolúvel para sempre.
Neste último caso, está o mito William Shakespeare.
O bardo inglês dedica
27 sonetos, dos 154 que integram seu precioso livro, publicado em 1609, a uma
misteriosa mulher que, literalmente há séculos divide as opiniões dos
apreciadores e estudiosos da obra shakespeariana. Essa figura enigmática é
conhecida nos meios literários como “Dark Lady”. Para uns, trata-se de mulher
morena, provavelmente mediterrânea, talvez espanhola ou italiana, quem sabe. Da
minha parte, descarto essa possibilidade. Baseado na descrição que Shakespeare
fez dela no soneto 130, concluo que se trata de uma africana, uma negra que
prendeu seu coração (caso não se trate, claro, de personagem, ou seja, de fruto
de sua imaginação). O que me leva a essa conclusão? Simples. Os dois últimos
versos da primeira estrofe: “ (,,,) Se neve é branca, é escura a sua cor;/ E a
cabeleira ao arame é igual (...)”.
Essa mulher existiu ou
foi uma das tantas personagens que Shakespeare inventou? E, se existiu, quem
foi? Ressalte-se que os sonetos que lhe dedicou não revelam um amor platônico,
romântico, etéreo como os poetas costumam fazer com suas musas. Alguns (a
maioria) chegam a divinizá-las, a considerá-las puríssimas e angelicais, de tal
sorte que não podem ser tocadas por mãos profanas e que, o simples fato de
desejá-las carnalmente, se constitui em imperdoável sacrilégio. Não foi o caso
de Shakespeare nos 27 sonetos dedicados à “Dark Lady”. Neles, o autor escancara
que se trata de um amor animal, físico, orgânico, carnal, claramente sexual, no
que difere de todas as composições anteriores do seu livro. O poeta não queria
“adorar” aquela mulher. Queria fazer sexo com ela.
Segundo alguns
(baseados em não sei o que), a tal dama negra (ou morena como muitos querem)
seria casada e trairia tanto o marido, quanto o amante, no caso o poeta. Mas...
existiu? E em caso afirmativo, quem era? Há hipóteses e especulações em
profusão, tanto em um sentido, quanto em outro, e que rendem acalorados
debates, além de inúmeros comentários que eu talvez também faça na sequência.
Há quem jure, por exemplo, que se tratava de Mary Fitton, dama de honra da
rainha Elizabeth I. Outros asseguram que se tratava da poetisa Emilia Lanier.
Mas há uma dificuldade intransponível nesses dois casos. Ambas as mulheres eram
brancas como a neve. Não correspondiam, portanto, à descrição da referida dama
morena.
Vejam como Shakespeare
trata sua musa nesta bela composição (com tradução de Péricles Eugênio da Silva
Ramos) e tirem suas próprias conclusões, caso seja possível:
Soneto CXXVII
“Não
era a cor morena outrora achada bela,
Ou
então de beleza o nome não possuía;
Mas
da beleza a justa herdeira agora é ela,
Pois
degrada a beleza infame bastardia.
Porque
se a mão usurpa os dons da natureza
E
alinda o feio ao dar-lhe aspecto enganador,
Perdeu-se
o nome e o templo amável da beleza,
Que
vive profanada ou mesmo em desfavor.
Mas
cabeleira cor de corvo tem a amada
E
olhos que estão de luto e como que a chorar
As
falsas belas que de belas não têm nada,
Pois
suprem a criação com mentiroso ar;
E
eles, chorando, tanto enfeitam sua agrura,
Que
deveria ser assim a formosura”.
Shakespeare admite, à
certa altura, que a mulher que lhe virou a cabeça poderia não ser considerada
bela para muita gente, talvez para a maioria. Admitiu ser provável que muitos a
achassem feia. Mas enfatizou que sua musa tinha encantos insuspeitados que aos
seus olhos faziam-na desejável, a ponto de despertar-lhe profunda excitação,
incontrolável desejo de possuí-la sexualmente. É o que depreendo dos seguintes
versos, traduzidos pela recém-falecida crítica teatral Bárbara Heliodora, umas
das maiores especialistas mundiais da obra shakespeariana:
SONETO CXXX
Vermelha
e branca é a rosa adamascada
Mas
tal rosa sua face não iguala;
E
há fragrância bem mais delicada
Do
que a do ar que minha amante exala.
Muito
gosto de ouvi-la, mesmo quando
Na
música há melhor diapasão;
Nunca
vi uma deusa deslizando
Mas
minha amada caminha no chão.
Mas
juro que esse amor me é mais caro
Que
qualquer outra à qual eu a comparo”.
Quem, afinal de contas,
foi a tal “Dark Lady”? Foi mulher de carne e osso, amante de Shakespeare, com a
qual o poeta e dramaturgo traiu a esposa? Foi a tal poetisa? Foi a dama de
honra da rainha Elizabeth I? Foi alguma prostituta londrina, como muitos
sugerem e até tentam provar? Ou não foi nada disso, mas somente personagem de
ficção, que nunca existiu na vida real, cuja tonalidade de pele não deve ser
entendida literalmente senão como representação do desejo pecaminoso da
luxúria, oposta ao amor platônico ideal associado com o "Fair Youth"?
Façam suas apostas senhores.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment