Poética arrebatadora
Pedro
J. Bondaczuk
A poética de William
Shakespeare é arrebatadora. Ao mesmo tempo que emociona, induz à reflexão.
Comungo da opinião do professor de literatura inglesa da Universidade Federal
de Santa Catarina, José Roberto O’Shea, quando observa que na poesia do Bardo
de Stratford-uppon-Avon, em especial nos sonetos, “é mais clara a percepção das
visões de mundo do eu lírico do que dos personagens de sua obra teatral. Nas
peças, o autor se apaga, não dá para saber o que o homem pensa. Shakespeare
defende os vilões com a mesma garra com que defende os heróis”. Já na poesia,
seu comportamento é diferente. “Os poemas não são autobiográficos, mas ficam
claras as visões do narrador sobre o amor, a traição, a amizade”. E ficam
mesmo.
Pode parecer heresia,
mas prefiro a relativamente pequena obra poética de Shakespeare à sua extensa
bibliografia teatral. Não se trata de não gostar de suas peças. Óbvio que
gosto. Mas se tiver que optar entre um e outro, optarei, sem, pestanejar, pelo
poeta, em detrimento do dramaturgo, mesmo em se tratando de um ícone da
dramaturgia mundial. Acabo de reler, pela “enésima” vez, o livro “Sonetos”, na
sua edição brasileira da Editora Hedra. O ideal seria ler Shakespeare no
original, mas meu inglês é para lá de deficiente. Mal dá para entender o
trivial desse idioma (se é que dá). Mas desta vez não perdi muito. A tradução
de Péricles Eugênio da Silva Ramos pode ser classificada de perfeita. Permitiu
que eu “saboreasse” a inspiração de Shakespeare sem as dubiedades tão comuns
deixadas por outros tantos tradutores.
Poesia é assim. Tem que
ser relida com constância e concentração. É o que faço a cada manhã. Antes da
costumeira meditação, leio algum poema (ou vários) de meus poetas favoritos e
sempre em voz alta, para me deliciar com sua musicalidade. A cada releitura, descubro nuances que
passaram despercebidas nas leituras anteriores. É como se o mesmo livro se
renovasse e se tornasse outro, original. Essa é, para o leitor apaixonado pelo
gênero (como é meu caso), a principal vantagem (ou uma delas) que ele leva
sobre romances, contos, novelas etc. Mas... voltemos a Shakespeare.
Seu livro, “Sonetos”,
publicado em 1609, contém 154 composições do tipo, tendo como títulos, números
em algarismos romanos. A temática é de sorte a “apaixonar os apaixonados”. Ou
seja, é uma profunda meditação do poeta (que nos induz a igualmente meditar)
sobre a natureza do amor, a paixão sexual, a procriação, a morte e o tempo. A
jornalista Meire Kusumoto, na matéria “O mestre dos atos e dos versos”,
escreve: “Do primeiro soneto, número 1,
até o 126, o eu lírico, ou seja, a personalidade ficcional por trás dos versos,
trata sobre os desejos e amores de um jovem rapaz, além da efemeridade da vida
e dos perigos dos desejos. Os sonetos seguintes, do 127 ao 154, são endereçados
à chamada ‘dark lady’, uma mulher a quem o eu lírico fala sobre o amor e a
frustração amorosa, a beleza e a passagem do tempo”.
Quanto à técnica de
composição, esta merece análise a parte, que farei oportunamente, estabelecendo
uma espécie de estilo que Shakespeare, se não o criou, consolidou-o. No que se
refere a rimas, por exemplo, optou pelo seguinte esquema: “ababcdcdefefgg”.
Seguiu esse mesmo molde em 153 sonetos do livro. A exceção foi uma só: no de
número 126. Dos 14 versos de cada
composição, os 12 primeiros servem para o desenvolvimento de determinada idéia.
A culminância dela, porém, a sua conclusão, seu “gran finale” são sempre os
dois últimos versos.
Selecionei, a esmo, do
precioso livro de Shakespeare, o soneto abaixo, que partilho com vocês, certo
de que o apreciarão com o mesmo entusiasmo com que o “saboreei”, com tradução,
como destaquei antes, de Péricles Eugênio da Silva Ramos:
Soneto CXXVII
“Não
era a cor morena outrora achada bela,
Ou
então de beleza o nome não possuía;
Mas
da beleza a justa herdeira agora é ela,
Pois
degrada a beleza infame bastardia.
Porque
se a mão usurpa os dons da natureza
E
alinda o feio ao dar-lhe aspecto enganador,
Perdeu-se
o nome e o templo amável da beleza,
Que
vive profanada ou mesmo em desfavor.
Mas
cabeleira cor de corvo tem a amada
E
olhos que estão de luto e como que a chorar
As
falsas belas que de belas não têm nada,
Pois
suprem a criação com mentiroso ar;
E
eles, chorando, tanto enfeitam sua agrura,
Que
deveria ser assim a formosura”.
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