Tuesday, August 18, 2015

Poética arrebatadora

Pedro J. Bondaczuk

A poética de William Shakespeare é arrebatadora. Ao mesmo tempo que emociona, induz à reflexão. Comungo da opinião do professor de literatura inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina, José Roberto O’Shea, quando observa que na poesia do Bardo de Stratford-uppon-Avon, em especial nos sonetos, “é mais clara a percepção das visões de mundo do eu lírico do que dos personagens de sua obra teatral. Nas peças, o autor se apaga, não dá para saber o que o homem pensa. Shakespeare defende os vilões com a mesma garra com que defende os heróis”. Já na poesia, seu comportamento é diferente. “Os poemas não são autobiográficos, mas ficam claras as visões do narrador sobre o amor, a traição, a amizade”. E ficam mesmo.

Pode parecer heresia, mas prefiro a relativamente pequena obra poética de Shakespeare à sua extensa bibliografia teatral. Não se trata de não gostar de suas peças. Óbvio que gosto. Mas se tiver que optar entre um e outro, optarei, sem, pestanejar, pelo poeta, em detrimento do dramaturgo, mesmo em se tratando de um ícone da dramaturgia mundial. Acabo de reler, pela “enésima” vez, o livro “Sonetos”, na sua edição brasileira da Editora Hedra. O ideal seria ler Shakespeare no original, mas meu inglês é para lá de deficiente. Mal dá para entender o trivial desse idioma (se é que dá). Mas desta vez não perdi muito. A tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos pode ser classificada de perfeita. Permitiu que eu “saboreasse” a inspiração de Shakespeare sem as dubiedades tão comuns deixadas por outros tantos tradutores.

Poesia é assim. Tem que ser relida com constância e concentração. É o que faço a cada manhã. Antes da costumeira meditação, leio algum poema (ou vários) de meus poetas favoritos e sempre em voz alta, para me deliciar com sua musicalidade.  A cada releitura, descubro nuances que passaram despercebidas nas leituras anteriores. É como se o mesmo livro se renovasse e se tornasse outro, original. Essa é, para o leitor apaixonado pelo gênero (como é meu caso), a principal vantagem (ou uma delas) que ele leva sobre romances, contos, novelas etc. Mas... voltemos a Shakespeare.

Seu livro, “Sonetos”, publicado em 1609, contém 154 composições do tipo, tendo como títulos, números em algarismos romanos. A temática é de sorte a “apaixonar os apaixonados”. Ou seja, é uma profunda meditação do poeta (que nos induz a igualmente meditar) sobre a natureza do amor, a paixão sexual, a procriação, a morte e o tempo. A jornalista Meire Kusumoto, na matéria “O mestre dos atos e dos versos”, escreve:  “Do primeiro soneto, número 1, até o 126, o eu lírico, ou seja, a personalidade ficcional por trás dos versos, trata sobre os desejos e amores de um jovem rapaz, além da efemeridade da vida e dos perigos dos desejos. Os sonetos seguintes, do 127 ao 154, são endereçados à chamada ‘dark lady’, uma mulher a quem o eu lírico fala sobre o amor e a frustração amorosa, a beleza e a passagem do tempo”.

Quanto à técnica de composição, esta merece análise a parte, que farei oportunamente, estabelecendo uma espécie de estilo que Shakespeare, se não o criou, consolidou-o. No que se refere a rimas, por exemplo, optou pelo seguinte esquema: “ababcdcdefefgg”. Seguiu esse mesmo molde em 153 sonetos do livro. A exceção foi uma só: no de número 126.  Dos 14 versos de cada composição, os 12 primeiros servem para o desenvolvimento de determinada idéia. A culminância dela, porém, a sua conclusão, seu “gran finale” são sempre os dois últimos versos.

Selecionei, a esmo, do precioso livro de Shakespeare, o soneto abaixo, que partilho com vocês, certo de que o apreciarão com o mesmo entusiasmo com que o “saboreei”, com tradução, como destaquei antes, de Péricles Eugênio da Silva Ramos:

Soneto CXXVII

“Não era a cor morena outrora achada bela,
Ou então de beleza o nome não possuía;
Mas da beleza a justa herdeira agora é ela,
Pois degrada a beleza infame bastardia.

Porque se a mão usurpa os dons da natureza
E alinda o feio ao dar-lhe aspecto enganador,
Perdeu-se o nome e o templo amável da beleza,
Que vive profanada ou mesmo em desfavor.

Mas cabeleira cor de corvo tem a amada
E olhos que estão de luto e como que a chorar
As falsas belas que de belas não têm nada,

Pois suprem a criação com mentiroso ar;
E eles, chorando, tanto enfeitam sua agrura,
Que deveria ser assim a formosura”.
     
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