Thursday, August 06, 2015

Homens e ratos



Pedro J. Bondaczuk


O escritor russo, Máximo Gorki, escreveu magistral conto, intitulado “A Mãe”, em que narra a história de uma criança paralítica, incapaz de se defender, que tinha várias partes do corpo comidas por ratos. Parece fantasia do genial autor, mas, creiam-me, é, pelo menos, verossímil. Já aconteceu algo parecido na vida real e vezes sem conta. No conto, os roedores produziram chagas enormes no menino indefeso, que sua mãe adolescente, imatura e irresponsável, não pôde ou não quis evitar. Todavia, como constatou Fedor Dostoiéwsky, “a realidade sempre supera a ficção” em termos de crueza e dramaticidade. E nem é preciso ir muito longe para encontrar casos que superam, em muito, as mais loucas e apavorantes fantasias de escritores de ficção.

Algumas situações no Brasil contemporâneo, por exemplo, em pleno terceiro milênio da Era Cristã, num país que é detentor da sexta ou da sétima maior economia do mundo, são tão insólitas, que nem o mais criativo dos dramaturgos ou o mais cruel dos sádicos conseguiria inventar. É o caso da história de Edileusa Félix da Silva, na época (1994) com 24 anos de idade, que era catadora de lixo na cidade pernambucana de Timbaúba, e que tinha um elemento comum com o citado conto de Gorki: os ratos. Só que, ao contrário do menino da narrativa do escritor russo, nem ela e nem sua família eram “comidos” pelos roedores. Comiam-nos. E há muitos anos. Até apreciavam seu sabor, conforme admitiram na oportunidade. Devoravam esses bichos, observe-se, não, evidentemente, por razões gastronômicas, mas por causa da necessidade. Faziam-no premidos pela fome.

Na época, citei esse caso, amplamente divulgado pela imprensa, em um editorial que redigi para o jornal em que trabalhava, o “Correio Popular” de Campinas, publicado na edição de 19 de outubro de 1994. Ressalte-se que Edileusa e sua família não eram as únicas pessoas a lançarem mão desse desesperado recurso e nem pretendi, então, caracterizar Pernambuco como Estado em que a miséria atingia tais extremos. Ademais, não atingia. Tínhamos, então, nas periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro, gente que sequer esse animal asqueroso tinha para comer.

Bem, a situação, nesse aspecto, melhorou demais, com os vários programas sociais adotados nos últimos anos. Ainda assim... Vocês acham que a miséria foi debelada? Que não existe mais ninguém precisando comer ratos para sobreviver? Antes fosse assim. Convenhamos, já não temos mais uma fome endêmica, como em passado recente, para vergonha nacional. Mas, volta e meia, tomamos conhecimento de casos como o de Edileusa e sua família em um desses tantos grotões deste País de dimensões continentais.

Encontrei em meus arquivos, por exemplo, matéria, publicada em 2013 pelo portal UOL, dando conta de que a escassez de comida, por causa da seca, estava forçando os moradores do Distrito de Brejinhos, no município de Assunção, no Piauí, a 273 quilômetros de Teresina, a caçarem o chamado “rato-rabudo”, como única alternativa para prover seu cardápio com proteínas. A região é caracterizada por muitas grutas, que servem de abrigo aos roedores. Era comum (não sei se ainda é) ver moradores, em todos os fins das tarde, saírem de suas casas para caçar. A caça, como explica a matéria, era artesanal, com uso de toscas armadilhas, feitas com pedra e gravetos;

Um morador de Brejinhos, identificado como Genivaldo Bezerra, inclusive explicou como eram essas caçadas. "Quando o rabudo passa pela armadilha, a pedra cai em cima e ele morre sufocado. No dia seguinte, a gente vai logo cedo ao local buscar o animal para já ser consumido no almoço", explicou ao repórter. Não sei se isso ainda é comum naquela região. Presumo que não. Mas... certeza não tenho nenhuma.

Nunca consegui entender as reações de muitas pessoas face casos como estes. Ficam chocadíssimas com histórias, como o conto que citei, de Máximo Gorki, mostram-se indignadas, classificam-nas como  peças de horror e de extremo mau gosto e chegam a duvidar até, não raro, da sanidade mental dos autores. Todavia,... na vida real, agem com olímpica indiferença quando sabem que seres humanos (muitas vezes seus vizinhos) são forçados a  comer ratos e outras porcarias, não por prazer (óbvio), mas para sobreviver. E não são poucos os que agem assim.     

É fato que nem todos os comedores de ratos fazem-no por necessidade. Em alguns países, esses asquerosos roedores, transmissores de um sem-número de doenças, são considerados manjares muito especiais. Duvidam? Pois não deveriam. Na Tailândia, por exemplo, esses animais são devorados com prazer e glutonaria, em várias formas de preparo, com receitas sofisticadíssimas. O mesmo ocorre na China, no Vietnã e em diversos outros países da Ásia. Até em certas partes da França esses roedores são consumidos, com todo o requinte e tempero da tradicional culinária francesa. E para os que os apreciam, ratos é que não faltam. Dificilmente faltarão;

Uma estimativa recente da Organização Mundial de Saúde deu conta de que haveria, no mundo, três desses roedores para cada habitante da Terra. Fazendo as contas, concluímos que há, no mínimo, por baixo, em cifras até subestimadas, vinte e um BILHÕES desses animais, que se reproduzem a velocidades estonteantes, à disposição dos “gourmets” que apreciam sua carne. Os biólogos apostam que serão os ratos, e não as baratas, como muitos supõem, que herdarão o Planeta, tão logo o homem seja extinto (e este faz a maior força possível para consumar a própria extinção). Afinal, enquanto a população desses não menos asquerosos insetos diminui drasticamente, conforme apontam pesquisas, a dos roedores cresce exponencialmente, mesmo sendo devorados por muitos. Dostoiewsky tinha ou não tinha razão ao afirmar que “a realidade sempre supera a ficção” em termos de crueza e dramaticidade? Ora se tinha!!!!!


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