Monday, August 03, 2015

Epidemias como temas de romances

Pedro J. Bondaczuk

A maior ameaça à vida humana – das tantas e tantas que podem extinguir nossa frágil espécie – talvez não seja o choque de algum cometa, ou de um meteorito de grande porte com o Planeta (possibilidade que não é nada remota) e nem mesmo uma impensável, porém possível, guerra mundial, com o uso maciço de armas nucleares, como prognosticam os “profetas do apocalipse”. Convenhamos, esses perigos são concretos. São como uma roleta russa para a humanidade. São catástrofes que podem ocorrer sem nenhum aviso, a qualquer momento, e acabar com nossa arrogante espécie. Todavia, para muitos especialistas, o risco maior á nossa sobrevivência talvez venha de seres vivos minúsculos, microscópicos, tão diminutos que são invisíveis a olho nu. Refiro-me a vírus e bactérias sumamente mortais, como os do ebola e de tantas outras doenças letais, muitos sequer não identificados ainda, que podem causar uma pandemia global incontrolável. Esse sempre foi meu temor.

Até aqui, as várias epidemias registradas mundo afora, bem ou mal, foram, ao fim e ao cabo, controladas, muitas delas somente após deixarem pavoroso rastro de mortes, como foi o caso, por exemplo, da gripe espanhola, que dizimou pelo menos vinte milhões de pessoas (matou, inclusive, um presidente eleito brasileiro, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse para seu segundo mandato). Isso sem falar na peste negra, que no século XIV chacinou um quarto da humanidade conhecida de então (um terço da população da Europa). É verdade que a Medicina evoluiu muito, notadamente após a década de 30 do século XX, com o advento dos antibióticos, além da produção de vacinas e das respectivas vacinações em massa. Mas...

Bem, perguntará, com certeza, o leitor: “O que tudo isso tem a ver com Literatura?” Tudo no mundo tem alguma relação com essa fascinante atividade, que trata da vida como ela é e como poderia, mas não deveria ser. Grandes romances, enfocando perigosas epidemias, foram escritos e alguns se tornaram best-sellers. Hollywood, volta e meia, explora o tema, em filmes dramáticos, em que, invariavelmente, emergem heróis que, de um jeito ou de outro, controlam a situação. Cito como exemplo um livro recentíssimo, “Caixa de pássaros – Não abra os olhos” – romance de estréia de Josh Malerman, lançado em 2014 no Brasil pela Editora Intrínseca,  em que um agente estranho provoca loucura nas pessoas, dizimando quase toda a humanidade. Poderia citar vários outros, nacionais e estrangeiros, recentes ou bastante antigos, mas não o farei.

Lembro, apenas, de “O véu pintado”, de William Somerset Maughan, que trata de uma epidemia de cólera na China, adaptado para o cinema com o título de “O despertar de uma paixão”. Prefiro, todavia, trazer à baila outro romance, este de um brasileiro, “A febre amorosa”, de Eustáquio Gomes, por uma série de razões. Uma delas é o fato do agente transmissor da doença de que ele trata no seu livro, a febre amarela, que quase varreu a cidade de Campinas do mapa em fins do século XIX, ser o mesmo que vem causando inquietação e medo na população do Estado de São Paulo. Refiro-me ao mosquitinho, tinhoso e resistente, conhecido como Aedes aegypti, responsável por milhares de casos de dengue no País, notadamente em território paulista.         

São as péssimas condições sanitárias e de higiene das grandes cidades brasileiras que propiciam a rápida proliferação desse resistente vetor da moléstia. É verdade que o mosquito se reproduz em água limpa, parada, mas esta só se acumula em decorrência do relaxo da população em relação a recipientes imprestáveis. Ou seja, ao lixo. É inconcebível que isso aconteça em pleno século XXI, quando as pessoas “arrotam” uma tal de modernidade que, nesse aspecto, no da higiene pública, é pior do que foi num passado já remoto. Essa doença tropical era desconhecida entre nós até 1988. Não digo que não existisse. Talvez até mesmo já tenha matado muita gente antes, mas não havia sido identificada.

E por que destaquei “A febre amorosa”, do saudoso Eustáquio Gomes (falecido no ano passado), entre tantos romances tendo por tema epidemias? Primeiro, por tratar-se de magnífico escritor (além de incomparável figura humana), que não foi devidamente valorizado como merecia. Tive o privilégio e a honra de ser não somente seu companheiro de trabalho, na redação do Correio Popular (era jornalista exemplar, modelo para as novas gerações do jornalismo), mas, sobretudo, seu amigo. Segundo, pelo fato do livro merecer, por sua qualidade literária e oportunidade do tema, ser lido por muitíssimas mais pessoas do que o foi. É verdade que, desde seu lançamento, em 1984, tornou-se uma espécie de clássico da literatura “underground”. Recomendo-lhes que o adquiram, mesmo que em algum sebo, e o leiam atentamente. É um livro imperdível. Mas não fez o sucesso que merecia fazer.

Mas o terceiro motivo é o principal. Ou seja, é o fato do transmissor da febre amarela, tratada no livro de Eustáquio, reitero, ser exatamente o mesmo da dengue: o perverso e assustador mosquitinho aedes aegypti. A história se passa em 1889, em um momento de crise política no País (como ocorre agora), nos estertores da monarquia, O cenário é uma cidade que foi cogitada para ser a capital do Estado, e que recusou essa cogitação, a Campinas dos poderosos barões do café, ferrenhamente republicanos (apesar de ser, pitorescamente, uma das localidades brasileiras preferidas do imperador Dom Pedro II). Foi nessa hoje vibrante metrópole, que a febre amarela por pouco riscou no mapa – reduzindo sua população de uns cinqüenta mil habitantes de então para algo em torno de menos de cinco mil, equivalente a quase uma pequena vila – que meu saudoso amigo escritor situou o escandaloso affaire amoroso entre a baronesa Angélica, casada com um velho e fanático monarquista, e o médico Alvim, apaixonado combatente da monarquia.         

Não sei se já existe algum livro tratando desse atualíssimo tema (presumo que não), mas está aí um bom assunto para ser explorado por algum bom ficcionista atual. Quem se habilita? Não se trata, como muitos podem pensar, de oportunismo, mas do cumprimento de uma missão. Afinal, nós, escritores, somos testemunhas do tempo em que vivemos. Somos uma espécie de cronistas da atualidade. Compete-nos registrar tudo o que de principal ocorra, em ficção ou não. E a epidemia de dengue que grassa em território paulista (mas não só nele) é algo digno de ser registrado. Nem espero que o eventual livro sobre o assunto tenha estilo pelo menos “parecido” com o de Eustáquio que, de acordo com um crítico (não me recordo qual) disse que meu amigo escritor se valeu de “uma linguagem veloz e elíptica, que lembra Machado de Assis”. E não houve nenhum exagero nessa constatação, posso lhes assegurar. Mas... se tiver essa qualidade... tanto melhor.


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