Epidemias como temas de
romances
Pedro
J. Bondaczuk
A maior ameaça à vida
humana – das tantas e tantas que podem extinguir nossa frágil espécie – talvez
não seja o choque de algum cometa, ou de um meteorito de grande porte com o
Planeta (possibilidade que não é nada remota) e nem mesmo uma impensável, porém
possível, guerra mundial, com o uso maciço de armas nucleares, como
prognosticam os “profetas do apocalipse”. Convenhamos, esses perigos são
concretos. São como uma roleta russa para a humanidade. São catástrofes que
podem ocorrer sem nenhum aviso, a qualquer momento, e acabar com nossa
arrogante espécie. Todavia, para muitos especialistas, o risco maior á nossa
sobrevivência talvez venha de seres vivos minúsculos, microscópicos, tão
diminutos que são invisíveis a olho nu. Refiro-me a vírus e bactérias sumamente
mortais, como os do ebola e de tantas outras doenças letais, muitos sequer não
identificados ainda, que podem causar uma pandemia global incontrolável. Esse
sempre foi meu temor.
Até aqui, as várias
epidemias registradas mundo afora, bem ou mal, foram, ao fim e ao cabo,
controladas, muitas delas somente após deixarem pavoroso rastro de mortes, como
foi o caso, por exemplo, da gripe espanhola, que dizimou pelo menos vinte
milhões de pessoas (matou, inclusive, um presidente eleito brasileiro, Rodrigues
Alves, que nem chegou a tomar posse para seu segundo mandato). Isso sem falar
na peste negra, que no século XIV chacinou um quarto da humanidade conhecida de
então (um terço da população da Europa). É verdade que a Medicina evoluiu
muito, notadamente após a década de 30 do século XX, com o advento dos
antibióticos, além da produção de vacinas e das respectivas vacinações em
massa. Mas...
Bem, perguntará, com
certeza, o leitor: “O que tudo isso tem a ver com Literatura?” Tudo no mundo
tem alguma relação com essa fascinante atividade, que trata da vida como ela é
e como poderia, mas não deveria ser. Grandes romances, enfocando perigosas
epidemias, foram escritos e alguns se tornaram best-sellers. Hollywood, volta e
meia, explora o tema, em filmes dramáticos, em que, invariavelmente, emergem
heróis que, de um jeito ou de outro, controlam a situação. Cito como exemplo um
livro recentíssimo, “Caixa de pássaros – Não abra os olhos” – romance de
estréia de Josh Malerman, lançado em 2014 no Brasil pela Editora Intrínseca, em que um agente estranho provoca loucura nas
pessoas, dizimando quase toda a humanidade. Poderia citar vários outros,
nacionais e estrangeiros, recentes ou bastante antigos, mas não o farei.
Lembro, apenas, de “O
véu pintado”, de William Somerset Maughan, que trata de uma epidemia de cólera
na China, adaptado para o cinema com o título de “O despertar de uma paixão”.
Prefiro, todavia, trazer à baila outro romance, este de um brasileiro, “A febre
amorosa”, de Eustáquio Gomes, por uma série de razões. Uma delas é o fato do
agente transmissor da doença de que ele trata no seu livro, a febre amarela,
que quase varreu a cidade de Campinas do mapa em fins do século XIX, ser o
mesmo que vem causando inquietação e medo na população do Estado de São Paulo.
Refiro-me ao mosquitinho, tinhoso e resistente, conhecido como Aedes aegypti,
responsável por milhares de casos de dengue no País, notadamente em território
paulista.
São as péssimas
condições sanitárias e de higiene das grandes cidades brasileiras que propiciam
a rápida proliferação desse resistente vetor da moléstia. É verdade que o
mosquito se reproduz em água limpa, parada, mas esta só se acumula em
decorrência do relaxo da população em relação a recipientes imprestáveis. Ou
seja, ao lixo. É inconcebível que isso aconteça em pleno século XXI, quando as
pessoas “arrotam” uma tal de modernidade que, nesse aspecto, no da higiene
pública, é pior do que foi num passado já remoto. Essa doença tropical era
desconhecida entre nós até 1988. Não digo que não existisse. Talvez até mesmo
já tenha matado muita gente antes, mas não havia sido identificada.
E por que destaquei “A
febre amorosa”, do saudoso Eustáquio Gomes (falecido no ano passado), entre
tantos romances tendo por tema epidemias? Primeiro, por tratar-se de magnífico
escritor (além de incomparável figura humana), que não foi devidamente
valorizado como merecia. Tive o privilégio e a honra de ser não somente seu
companheiro de trabalho, na redação do Correio Popular (era jornalista
exemplar, modelo para as novas gerações do jornalismo), mas, sobretudo, seu
amigo. Segundo, pelo fato do livro merecer, por sua qualidade literária e
oportunidade do tema, ser lido por muitíssimas mais pessoas do que o foi. É
verdade que, desde seu lançamento, em 1984, tornou-se uma espécie de clássico
da literatura “underground”. Recomendo-lhes que o adquiram, mesmo que em algum
sebo, e o leiam atentamente. É um livro imperdível. Mas não fez o sucesso que
merecia fazer.
Mas o terceiro motivo é
o principal. Ou seja, é o fato do transmissor da febre amarela, tratada no
livro de Eustáquio, reitero, ser exatamente o mesmo da dengue: o perverso e
assustador mosquitinho aedes aegypti. A história se passa em 1889, em um
momento de crise política no País (como ocorre agora), nos estertores da
monarquia, O cenário é uma cidade que foi cogitada para ser a capital do
Estado, e que recusou essa cogitação, a Campinas dos poderosos barões do café,
ferrenhamente republicanos (apesar de ser, pitorescamente, uma das localidades
brasileiras preferidas do imperador Dom Pedro II). Foi nessa hoje vibrante
metrópole, que a febre amarela por pouco riscou no mapa – reduzindo sua
população de uns cinqüenta mil habitantes de então para algo em torno de menos
de cinco mil, equivalente a quase uma pequena vila – que meu saudoso amigo
escritor situou o escandaloso affaire amoroso entre a baronesa Angélica, casada
com um velho e fanático monarquista, e o médico Alvim, apaixonado combatente da
monarquia.
Não sei se já existe
algum livro tratando desse atualíssimo tema (presumo que não), mas está aí um
bom assunto para ser explorado por algum bom ficcionista atual. Quem se
habilita? Não se trata, como muitos podem pensar, de oportunismo, mas do
cumprimento de uma missão. Afinal, nós, escritores, somos testemunhas do tempo
em que vivemos. Somos uma espécie de cronistas da atualidade. Compete-nos
registrar tudo o que de principal ocorra, em ficção ou não. E a epidemia de
dengue que grassa em território paulista (mas não só nele) é algo digno de ser
registrado. Nem espero que o eventual livro sobre o assunto tenha estilo pelo
menos “parecido” com o de Eustáquio que, de acordo com um crítico (não me
recordo qual) disse que meu amigo escritor se valeu de “uma linguagem veloz e
elíptica, que lembra Machado de Assis”. E não houve nenhum exagero nessa
constatação, posso lhes assegurar. Mas... se tiver essa qualidade... tanto
melhor.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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