Saturday, August 29, 2015

No devido contexto

Pedro J. Bondaczuk

O célebre monólogo criado por William Shakespeare no ato 3, cena 1 da peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, tem sido interpretado de formas variadas, porquanto comporta diferentes interpretações. Contudo, um equívoco, bastante comum, tem a ver com (digamos) a continuidade dessa célebre produção. Para que ela seja devidamente entendida (e aproveitada) é indispensável que seja lida (e representada) no devido contexto.  Há, por exemplo, quem situe o famoso dilema "Ser ou não ser" em parte do enredo em que ele, de fato, não está. O monólogo não se dá, como já li muitas vezes, na cena em que Hamlet, no cemitério, segura a caveira de Yorick, o falecido bobo da corte. Situa-se bem antes. Ocorre no momento em que o príncipe da Dinamarca é posto contra a parede, para tomar uma atitude, depois que o fantasma do pai lhe revela a verdadeira circunstância da sua morte, que até então estivera convicto que se dera por causas naturais.

O tal "ser ou não ser" aparece na abertura do terceiro ato, como tenho destacado e reiterado. Foi em um momento em que Hamlet se preparava para consumar a primeira das dolorosas decisões que teria que tomar. Apesar da dúvida manifestada no monólogo, de vingar ou não vingar a morte do pai, em seu íntimo já havia decidido que o faria. Como cheguei a essa conclusão?  Fácil? O tal “ser ou não ser” ocorre exatamente no momento em que o príncipe procura Ofélia para lhe dizer que não a amava. Caso não a amasse mesmo, já seria atitude gravíssima, porquanto iria ferir a suscetibilidade de uma donzela que sempre estivera convicta do seu amor e que lhe dera plena e irrestrita correspondência.

Todavia, a questão era muito mais grave, dolorosa e dramática. Hamlet amava Ofélia como nunca amara nenhuma outra mulher. Por que, pois, dizer-lhe o contrário, desiludi-la e tirar até sua vontade de viver? Sua intenção era das mais nobres: poupar a amada de novos sofrimentos face atitudes que pretendia tomar na sequência para vingar a morte do pai. Portanto, já havia decidido levar a cabo a vingança. Para consumar seu plano, entendia que precisava se afastar de Ofélia, mesmo a amando e tendo convicção da plena correspondência, para não comprometê-la. Por que? Porque ela era filha de Polônio, o primeiro-ministro e este, certamente, se oporia ao relacionamento da filha com o príncipe depois dele atentar contra a  vida do próprio rei, seu tio Cláudio.

Hamlet, portanto, acreditava estar protegendo a amada, rompendo com ela. Claro que não estava. Mas... O príncipe, transtornado, entra na casa de Polônio para cumprir o que havia decidido. É exatamente nesse momento que Shakespeare traz à cena o famoso monólogo (e não no cemitério, tendo a cabeça de Yorick nas mãos). Foi no instante em que aguardava a entrada de Ofélia no recinto. Imagine, caro leitor, o quanto Hamlet estava sofrendo naquela ocasião! Ponha-se em seu lugar e imagine o que sentiria caso tivesse que dizer ao grande amor de sua vida que não a amava e, por causa dessa mentira, perdê-la para sempre!! Poucos, pouquíssimos têm coragem de uma renúncia desse porte, não importa por qual razão. Nesse momento, portanto, Hamlet sofre, e sofre muito. É então que começa a pensar no preço, muito alto, que estava tendo que pagar para vingar a morte do pai. Tal sacrifício valeria a pena? Não haveria  alternativa? Por que pagar preço tão elevado para cumprir o que entendia ser dever filial? "Ser ou não ser?".

Apesar da profunda dúvida, manifestada no dramático monólogo, o príncipe, na sequência da cena, faz o que havia planejado fazer ao chegar à casa de Polônio: nega para Ofélia que a ama. A conseqüência da sua atitude certamente foi mais grave do que supunha. Causou tamanha dor no coração da jovem amada, que ela finda por morrer no decorrer da peça. Claro que a morte de Ofélia multiplica por trilhões a dor de Hamlet. Se essa já era insuportável com a simples separação do amor da sua vida, se torna infinitamente pior depois dela morrer. Shakespeare demonstra, de forma genial, que "Ser" só se torna opção quando somos confrontados com a verdade dos fatos, com a verdade do mundo que nos cerca e, principalmente, com a “nossa” verdade, sobre quem somos de fato.
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É de se notar a maneira hábil que Shakespeare utilizou para revelar a Hamlet o que realmente havia acontecido em relação à morte do pai. O “fantasma” que lhe faz tal revelação é interligentíssima metáfora, posto que fugindo da realidade (fantasmas não existem), pois tem conotação de algo assustador, que causa medo. A verdade, nua e crua, dependendo a respeito do que, pode ser (e não raro é) amedrontadora. E mais, é pavorosa, horrenda, aterrorizante. Às vezes é mais assustadora do que a mais pavorosa das assombrações que se possa imaginar. Para complicar as coisas, o fantasma do pai não só lhe revelou as verdadeiras circunstâncias da sua morte – pelas mãos do próprio irmão, com a cumplicidade da esposa – como exigiu do jovem e ingênuo príncipe que tomasse uma atitude que mudaria, para sempre, os rumos da sua vida. Ou seja, a verdade “assombrou” Hamlet!! E mais: findou por destruí-lo (afetiva, psicológica e por fim fisicamente)!!!


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