Thursday, August 27, 2015

Os vários significados de ser

Pedro J. Bondaczuk

O conceito de “ser”, trazido à baila no célebre monólogo criado por William Shakespeare no ato 3, cena 1 da peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, é um dos fundamentos da Filosofia desde que esta “mãe” de todas as ciências surgiu. A tradição grega deu a esse verbo quatro significados distintos. De acordo com a enciclopédia eletrônica Wikipédia, o filósofo Platão explicitou cada um deles, de forma lógica e inquestionável, em dois de seus diálogos: nos que intitulou de “Parmênides” e “Sofista”. O sentido mais comum de “ser”   é o de “existir”. Quando afirmo que determinada pessoa ou coisa é, imediatamente vem à mente do meu interlocutor que ela existe. Caso não existisse, obviamente, jamais seria.

Não foi essa, porém, a conotação que Shakespeare quis dar ao dilema de Hamlet, o célebre “ser ou não ser”. Observe-se que para os gregos não havia distinção entre a existência de algo concreto e de algo abstrato. Diziam, por exemplo, também, que o “unicórnio é”. Todavia, nem preciso dizer que esse tipo de animal não existe e nunca existiu, não é mesmo? Wikipédia lembra que esse povo extraordinário não tinha nenhuma palavra específica para o conceito de existência. Para eles, existir era sempre “ser”, quer o objeto ou animal existisse concretamente, quer não passasse de abstração.   

O segundo significado, definido por Platão, para este verbo foi o de identidade. Quando digo que Zacarias é um homem, estou esclarecendo que não é nem uma coisa, nem animal. É humano. Não foi essa, também, a conotação que Shakespeare deu ao dilema de Hamlet. Sua humanidade estava implícita e era óbvia. O terceiro sentido de “ser”, para Platão, era o “predicativo”. Ou seja, o que exprimia uma propriedade, ou um predicado do objeto ou da pessoa referida. Quando dizemos “Pedro é forte”, deixamos clara uma característica capaz de identificá-lo. Implica em uma ação, mesmo que potencial. Para sabermos que ele conta com a citada força, pressupõe-se que tenhamos testemunhado alguma ação dele em que tenha manifestado essa característica.

Creio que foi esse o sentido que Shakespeare quis dar ao seu célebre “ser ou não ser, eis a questão”. O que me leva a essa conclusão é a alternativa que o bardo inglês propôs, em forma interrogativa, na sequência, nos versos seguintes do icônico monólogo:

“Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?”.

Hamlet somente poderia optar por uma dessas alternativas caso “fosse”: ou um sujeito alienado e omisso, que aceita todas as circunstâncias sem reagir, ou um lutador ousado e destemido, que combate o mal que o aflige para dar-lhe fim. Se escolhesse o primeiro caminho seria, para sempre, o indivíduo covarde, de certa forma cúmplice do assassinato do pai e da infidelidade da mãe, que por medo ou por comodidade preferiria deixar as coisas como estavam, sem nada fazer para revertê-las, mesmo ciente da sua injustiça. De certa forma, portanto, compactuaria com os delitos. A segunda opção era mais complicada e perigosa, posto que mais digna. Caso essa fosse sua decisão, Hamlet poderia tanto se tornar assassino, se escolhesse se vingar, na base da pena de Talião, quanto encontrar outra solução diferente, mas dependente de terceiros, como, por exemplo, a de levar os assassinos à justiça, que talvez nem acolhesse sua pretensão.

Os dilemas sempre nos cobram algum preço, não raro proibitivo. É assim que a vida funciona. Se Hamlet optasse “por sofrer na alma pedradas e flechadas do destino”, sem nada fazer, depois de conhecer a verdade sobre a morte do pai, provavelmente sairia incólume, fisicamente. O certo, porém, é que ficaria para sempre marcado com a pecha de covarde e perderia todo o respeito de seus concidadãos e o próprio. Seria um pária em seu reino. Talvez não tivesse coragem de sequer se olhar no espelho. O preço da alternativa, contudo, seria muitíssimo maior, embora mais digno. Talvez, pegando “em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim”, se tornaria assassino, ou mesmo poderia ser morto antes de sequer consumar a vingança, embora a mera decisão de vingar o pai se constituísse num fiel cumprimento do código de honra que por tanto tempo prevaleceu nas mais diversas sociedades.

Finalmente, o quarto significado definido por Platão para o verbo “ser” é o veritativo. Ou seja, o filósofo considerou-o a essência da verdade. Esse, porém, é um aspecto que lhe deixo como desafio, paciente leitor, como uma espécie de lição de casa. Pesquisar a respeito, certamente, só lhe fará bem.  Por questão de justiça, é mister destacar que o primeiro filósofo (ao que se saiba) a colocar explicitamente o conceito de “ser”, foi Parmênides. Só que, ao contrário de Platão, ele afirmou que era impossível falar ou pensar no não ser, pois, no seu entender, ele nada significava. Mas... essa é outra história que fica para outra vez.


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