Dúvidas
prudentes
Pedro J. Bondaczuk
“A dúvida prudente é considerada
o farol do sábio”. Essa afirmação foi feita, há mais de quatro séculos, por
William Shakespeare, pela boca de um de seus tantos personagens. Notem que ele
não disse que a atitude de ceticismo absoluto, caracterizada por se duvidar de
tudo e de todos, e o tempo todo, é o caminho seguro que conduz à sabedoria.
Colocou condição para essa dúvida: que seja “prudente”.E no que consiste tal
prudência? Consiste em questionar somente o que for questionável, o não óbvio,
o que apresente alguma dubiedade, qualquer que ela seja. Não é a maneira com
que a maioria das pessoas age.
Muitos aceitam tudo o que lhes
dizem, ou que vêem, ouvem e leem, sem nenhum questionamento, como se fosse o
suprassumo da verdade. Não raro não é. Pior, transformam isso em dogma, em algo
que não se conteste, em inabalável convicção. Por outro lado, há os que duvidam
de tudo e mantêm essa posição mesmo diante de argumentos, e mais, de provas
incontestáveis de que aquilo de que duvidam é verdadeiro. Nenhum desses grupos,
portanto, age com prudência. Não permitem que esse “farol” ilumine seu caminho
para a sabedoria.
Dúvidas não faltam quando se
procura conhecer quem foi, de fato, William Shakespeare, figura tão polêmica,
em torno da qual há mais boatos do que fatos. Algumas são razoáveis e,
portanto, prudentes. A maioria, porém... não guarda o mínimo de razoabilidade.
As discussões dos seus tantos biógrafos e inúmeros estudiosos já começam pela
data de seu nascimento. Não quanto ao mês e ao ano (abril de 1564), sobre os
quais há consenso, mas ao dia em que se deu. O dia mais aceito é 23 de abril,
data em que morreu, 52 anos depois, em 1616. Todavia, certeza a esse propósito
não há nenhuma. Existe, pois, dúvida prudente, razoável, a respeito.
Ocorre que de William Shakespeare
não há certidão de nascimento. Há, apenas, a de batismo. Ele foi batizado em 26
de abril de 1564 na igreja da Santíssima Trindade, em Stratford-upon-Avon,
cidade localizada no condado de Warwickshire, no centro da Inglaterra. Quanto a
esse aspecto, não há, pois, qualquer dúvida. Ocorre que no documento, redigido
em latim, não consta a data de nascimento, mas somente a do batizado. E não é
lógico supor que houvesse nascido nesse mesmo dia. Era costume na época batizar
os recém-nascidos alguns dias depois de virem ao mundo. Quantos? Estes
variavam, de acordo com as circunstâncias. Portanto, a data de 23 de abril de
1564, no meu entender, é aleatória. Não passa de “chute”. Desperta, como se vê,
dúvida para lá de razoável.
Porém, o fato de existir essa
certidão de batismo elimina outra suposição, bastante comum e popular, aceita
como verdadeira por muitos: a de que William Shakespeare nunca existiu e que é
mero pseudônimo adotado por alguma figura ilustre que quisesse manter-se no
anonimato, supostamente algum membro da realeza inglesa. Por mais absurda que
tal dúvida seja, ela resiste ao tempo e é sustentada por muitos estudiosos da
obra do consagrado dramaturgo. Nela, todavia, não há um mínimo de razoabilidade.
Não é, pois, “prudente” e muito menos farol da sabedoria.
Sobre a infância de Shakespeare
há escassas referências. Desconfio que a maioria, se não a totalidade, seja
constituída de meras especulações e não propriamente de informações. Afinal,
quem poderia prever que aquele garoto específico, e não outro qualquer da mesma
cidade, iria se tornar tão importante na Literatura e, mais especificamente, na
dramaturgia? Ninguém, não é mesmo. Portanto, tudo o que se referir a esse
período é duvidoso. E é prudente que seja assim caso se queira apurar,
rigorosamente a verdade, fundamentada em fatos.
O biógrafo norte-americano Peter
Ackroyd, especula, no livro “Shakespeare: the biography”, que o garoto iniciou
sua vida escolar aos 5 ou 6 anos na capela da igreja da Santíssima Trindade.
Pode ser que sim, pode ser que não. Não há a menor prova documental (e nem,
compreensivelmente, testemunhal) sobre isso. O próprio fato dele não precisar a
idade com que o menino começou a freqüentar aulas já sugere que esse dado se
trata de mera especulação. Pelo menos, suscita dúvida “prudente”. Aceita essa
versão quem quiser, mas não pelo seu caráter de informação: apenas por
sugestão.
Biografias devem ser escritas com
base em fatos e, ainda assim, sempre terão componentes de ficção, de
imaginação, de interpretação da parte de quem as escreve. Daí eu não acreditar,
liminarmente, em tudo que elas contêm, cultivando, a propósito, dúvida
prudente. Afinal, como o próprio Shakespeare afirmou, pela boca de um de seus
tantos personagens: “A natureza humana geralmente carece de poder para igualar
as estranhas criações da imaginação”. Mesmo relatos ditos factuais, de
repórteres à prova de suspeitas, têm componentes imaginários, à sua revelia
que, subconscientemente, “poluem” o que se pretende seja a mais absoluta e
rigorosa verdade e que não passa de interpretação de um acontecimento.
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