Wednesday, August 19, 2015

O que Shakespeare escreveu foram sonetos?

Pedro J. Bondaczuk

O soneto, uma das formas sofisticadas e consagradas de fazer poesia, que resiste ao tempo e à sucessão de escolas e tendências literárias e permanece mais viva do que nunca, provavelmente agrada tanto por sua musicalidade. O próprio nome sugere íntima relação com o som, com a música, mesmo que esta pareça ausente. Na verdade, nunca está. Quando declamado (e bem, obviamente) parece ao espectador que quem o declama esteja cantando, embora não cante”. Foi desta forma que iniciei a crônica que redigi em 28 de abril de 2012, com título auto-explicativo, que divulguei à exaustão nos espaços que frequento na internet. Intitulei-a, singelamente, de “Curiosidades sobre o soneto”.

E onde entra William Shakespeare nesta história? Explicarei na sequência. Antes, reporto-me a outro parágrafo da referida crônica em que informei: “A palavra ‘soneto’ é italiana e nem é preciso conhecer esse idioma para se concluir o que significa. É isso mesmo que você pensou, esperto leitor. Significa ‘pequena canção’ ou ‘pequeno som’. Creio que nem poderia ter outro significado senão este. Ninguém tem certeza sobre onde, quando e como essa forma de fazer poesia surgiu. A versão mais aceita é que tenha sido criada no século XIII, na ilha italiana da Sicília, para ser cantado na corte de Frederico II Hohenstaufen”. Mantém-se a pergunta: onde entra Shakespeare nesta história? Nada como um pouco de suspense para prender sua atenção, paciente (ou impaciente?) leitor.

Alguns parágrafos adiante, observei: “Quando se fala em soneto, pensa-se, logo, em uma composição de catorze versos, dividida em dois quartetos e dois tercetos. Essa, todavia, não é forma única, mas apenas uma das três em que essa técnica de composição se apresenta. Óbvio que é a mais conhecida, daí as pessoas não afeitas aos meandros da literatura concluírem se tratar da única. Esta, que se consagrou, é a maneira italiana de compor. Esse tipo de soneto é conhecido, também, como ‘petrarquiano’, referência óbvia ao poeta Francesco Petrarca que a utilizou bastante e a consagrou (e com a qual, evidentemente, também ‘se’” consagrou)”. Como se vê, Shakespeare ainda não entrou em cena.

Contudo, um parágrafo depois, o bardo inglês, finalmente, entra na história: “Existem... outras duas formas que não digo que sejam desconhecidas ou menos conhecidas. Não se trata disso. Ocorre que muitos (e põe muitos nisso) nem sabem que são maneiras diferentes de fazer soneto. Uma delas foi sobejamente utilizada por William Shakespeare. Não se pode, portanto, afirmar que se trate de forma pouco divulgada. Pelo contrário. Não há leitor, razoavelmente instruído, que não conheça a obra do célebre e consagrado bardo inglês. E qual a sua diferença do soneto tradicional, ultra-conhecido? Simples, apresenta a conformação de três quartetos e uma estrofe de apenas dois versos, com a função de dístico. Como se vê, tem, também, 14 versos, mas sua distribuição é que é diferente. Portanto, quando lerem composição desse tipo de Shakespeare e lhe disserem que se trata de um soneto do bardo inglês, não estranhe, não discuta e muito menos conteste com ares pedantes de sabe tudo. Caso teime e faça uma aposta, perderá, com certeza. Não caia nessa”.

Bem, a questão não é tão pacífica como dei a entender em minha crônica. Há uma corrente bastante expressiva de críticos e especialistas em Literatura que jura que o que Shakespeare escreveu como sendo “sonetos”, não o eram (ou não o são, pois eles aí estão para quem quiser ler), a despeito dessas composições terem 14 versos, e decassílabos, ou seja, com toda a conformação dessa forma de poetar. Por que? Apenas por causa da distribuição de 4-4-4-2, em vez do tradicional 4-4-3-3. Considero isso suprema tolice, mas... há quem abrace essa tese até com paixão.

Vasco de Castro Lima escreveu, em determinado trecho do seu excelente livro “O mundo maravilhoso do soneto”: “Shakespeare (1564 -1616), na Inglaterra, adotou a invenção de Thomas Wyatt (1503 – 1542), ou Henry Howard, Conde de Surrey (1517 – 1547), um dos dois: três quadras de rimas independentes e um dístico final, rimado. É o chamado ‘soneto inglês’, ou ‘shakespeariano’. Mas, será admissível, será justo, será lícito, neste caso, falar-se em soneto? A respeito, há o seguinte comentário do poeta português José Fernandes Costa (1848 – 1920): ‘O soneto shakespeariano não seria chamado soneto em qualquer outra língua, daquelas onde a forma petrarquiana prevaleceu. Em Shakespeare, ficou sendo uma composição de leitura agradável, sob o ponto de vista rítmico, mas não é soneto’”. Como assim?!!! Com todo respeito ao ilustre poeta português, mas essa sua conclusão é uma imensa bobagem. Há, como afirmei, quem acolha essa tese até com paixão. Ora, ora, ora... 

Polêmica à parte, prefiro deliciar-me com pérolas do bardo inglês, como esta, traduzida com competência por Ivo Barroso:

SONETO XVIII

“Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Ás vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.

E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver”.

Caso pudesse, reproduziria, neste espaço, todas as 154 composições do livro de William Shakespeare, publicado no já remotíssimo ano de 1609, dada a sensibilidade, a grandeza e riqueza literária dos seus versos. Como não posso... partilho com vocês mais esta jóia de inspiração e beleza, igualmente traduzida por Ivo Barroso:   

SONETO XVII

“Um dia crer nos versos meus quem há-de
Se eu neles derramar teus dons mais puros?
No entanto sabe o céu que eles são muros
Que a tua vida ocultam por metade.

Dissera o que de teu olhar emana,
Teus dons em nova métrica medira,
Que acharia o porvir então: “Mentira!
Tais tratos não retratam face humana.”

Que mofem pois deste papel fanado
Qual de velhos loquazes, e a teu ente
Chamem de pura exaltação da mente
E a meu verso exageros do passado.

….Mas se chegar a tua estirpe a tanto,
….Em dobro hás-de viver: nela e em meu canto”.

Embora não tenha sido o criador desse tipo de soneto, ele passou para a história como sendo “shakespeariano”. Justíssimo!!! Afinal, nenhum outro poeta sequer chegou perto da perfeição que William Shakespeare emprestou a essa maneira de compor. Merece, pois, sua “autoria”, embora historicamente não tenha sido seu inventor. Mas o que o bardo inglês escreveu foram sonetos, sim senhores. E mais: “sonetos shakespearianos”, ora bolas! 


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