Viúvas
da ditadura
Pedro J. Bondaczuk
O presidente Alfonsin, quando assumiu a presidência
da Argentina, em dezembro de 1983, estava ciente das imensas dificuldades que
encontraria para arrumar a casa, após a passagem de um regime pelo poder que,
não só arruinou a economia nacional com aventuras de arrepiar os cabelos, como
promoveu um dos maiores genocídios de que se tem notícia na história
contemporânea da América Latina. Muitos observadores políticos, diante do
quadro caótico que aquele país apresentava naquela oportunidade, não davam mais
do que um ano de duração para o seu governo. Afinal, ao mesmo tempo em que
teria de equacionar questões delicadíssimas, de caráter econômico-social, como
a renegociação da enorme dívida externa argentina, estava compromissado a levar
às barras dos tribunais os responsáveis pelo desaparecimento criminoso e
covarde de milhares de pessoas, durante o lamentável período chamado de
"guerra à subversão".
Raul Alfonsin, entretanto, decepcionou aos
derrotistas. É verdade que teve que transigir em muitas oportunidades. Por
exemplo, com os banqueiros e com o Fundo Monetário Internacional. Afinal, os
argentinos, em momento algum, admitiram dar o calote nos credores de sua dívida
externa. Ousou aplicar remédios sumamente amargos, num país repleto de
descontentes, congelando preços e salários e modificando o signo monetário
nacional. A medida provocou uma brutal recessão, aumentando o número de
falências e criando um vasto contingente de desempregados. Todas essas
providências, ao menos no plano da teoria, seriam mais do que suficientes para
qualquer presidente latino-americano se tornar sumamente impopular junto ao seu
povo. Mas não foi isso o que aconteceu com Raul Alfonsin. A população não é tão
tola quanto tantos querem fazer crer.
Todas as pesquisas de opinião pública na Argentina,
atualmente, são unânimes em apontar o disparado favoritismo do partido desse
homem íntegro, corajoso e dinâmico, para as eleições do próximo domingo. Ele é
hoje não apenas um nome de grande respeito em seu país, mas até um paradigma
dentro do Terceiro Mundo, digno de ser imitado, pela aura de credibilidade que
soube despertar em torno de si.
Pois é a esse político que forças retrógradas, que
desgraçaram essa nobre nação vizinha, num passado ainda recentíssimo, se
empenham por derrubar. E por qual motivo? Por ele estar de namoro com Moscou,
com Cuba ou com qualquer outro país marxista? Por propiciar campo a que
aventureiros tomem o poder pelas armas, após algum levante guerrilheiro? Por
cometer atos de corrupção e malversação do erário público? não! Absolutamente
não! Querem desestabilizar o regime de Raul Alfonsin porque ele ousou pautar
todos os seus atos administrativos nos estritos limites da lei. Porque teve a
coragem de apurar a responsabilidade pelas nove mil mortes comprovadas de
cidadãos argentinos, pagadores de impostos, cumpridores de seus deveres sociais
e que tinham o direito de ter suas idéias e opiniões respeitadas, mas que não
tiveram o respeito de que eram credores. Que morreram por esse motivo. E todas
as decisões do presidente foram tomadas de acordo com a lei.
As "viúvas da ditadura", os que, à sombra
do arbítrio se locupletaram, se excederam em desmandos e romperam todos os
limites do direito e da ética, se sentem hoje muito desamparados, tendo que
viver num clima de normalidade democrática. São peixes fora da água nas
ocasiões em que a liberdade impera. Querem, ao invés de prisão perpétua, dar
medalhas aos torturadores e assassinos de crianças, mulheres e velhos do
período da repressão. Mas o povo argentino sabe o que quer. Ainda tem fresco na
memória o pesadelo que foi obrigado a viver até outubro de 1983, quando num
desabafo nacional, consagrou nas urnas a Raul Alfonsin.
A América do Sul inteira está de olho na marcha dos
acontecimentos na Argentina. Certamente, o estado de sítio não será suficiente
para conter a sanha dos que se sentem deslocados em sociedades democráticas.
Dos que cultuam a imagem de um Adolf Hitler. Dos que conhecem apenas o
argumento da violência para impor opiniões e obter vantagens de que não são
merecedores. Mas a população argentina saberá, certamente, defender suas
instituições e exorcizar os pavorosos fantasmas do golpismo. Já é hora desse
processo tão desabonador para a imagem do Terceiro Mundo ser detido. E ninguém
melhor do que Alfonsin para dar mais esse exemplo.
(Artigo publicado na página 9, Internacional, do
Correio Popular, em 26 de outubro de 1985)
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