Monday, June 15, 2015

Viúvas da ditadura



Pedro J. Bondaczuk


O presidente Alfonsin, quando assumiu a presidência da Argentina, em dezembro de 1983, estava ciente das imensas dificuldades que encontraria para arrumar a casa, após a passagem de um regime pelo poder que, não só arruinou a economia nacional com aventuras de arrepiar os cabelos, como promoveu um dos maiores genocídios de que se tem notícia na história contemporânea da América Latina. Muitos observadores políticos, diante do quadro caótico que aquele país apresentava naquela oportunidade, não davam mais do que um ano de duração para o seu governo. Afinal, ao mesmo tempo em que teria de equacionar questões delicadíssimas, de caráter econômico-social, como a renegociação da enorme dívida externa argentina, estava compromissado a levar às barras dos tribunais os responsáveis pelo desaparecimento criminoso e covarde de milhares de pessoas, durante o lamentável período chamado de "guerra à subversão".

Raul Alfonsin, entretanto, decepcionou aos derrotistas. É verdade que teve que transigir em muitas oportunidades. Por exemplo, com os banqueiros e com o Fundo Monetário Internacional. Afinal, os argentinos, em momento algum, admitiram dar o calote nos credores de sua dívida externa. Ousou aplicar remédios sumamente amargos, num país repleto de descontentes, congelando preços e salários e modificando o signo monetário nacional. A medida provocou uma brutal recessão, aumentando o número de falências e criando um vasto contingente de desempregados. Todas essas providências, ao menos no plano da teoria, seriam mais do que suficientes para qualquer presidente latino-americano se tornar sumamente impopular junto ao seu povo. Mas não foi isso o que aconteceu com Raul Alfonsin. A população não é tão tola quanto tantos querem fazer crer.

Todas as pesquisas de opinião pública na Argentina, atualmente, são unânimes em apontar o disparado favoritismo do partido desse homem íntegro, corajoso e dinâmico, para as eleições do próximo domingo. Ele é hoje não apenas um nome de grande respeito em seu país, mas até um paradigma dentro do Terceiro Mundo, digno de ser imitado, pela aura de credibilidade que soube despertar em torno de si.

Pois é a esse político que forças retrógradas, que desgraçaram essa nobre nação vizinha, num passado ainda recentíssimo, se empenham por derrubar. E por qual motivo? Por ele estar de namoro com Moscou, com Cuba ou com qualquer outro país marxista? Por propiciar campo a que aventureiros tomem o poder pelas armas, após algum levante guerrilheiro? Por cometer atos de corrupção e malversação do erário público? não! Absolutamente não! Querem desestabilizar o regime de Raul Alfonsin porque ele ousou pautar todos os seus atos administrativos nos estritos limites da lei. Porque teve a coragem de apurar a responsabilidade pelas nove mil mortes comprovadas de cidadãos argentinos, pagadores de impostos, cumpridores de seus deveres sociais e que tinham o direito de ter suas idéias e opiniões respeitadas, mas que não tiveram o respeito de que eram credores. Que morreram por esse motivo. E todas as decisões do presidente foram tomadas de acordo com a lei.

As "viúvas da ditadura", os que, à sombra do arbítrio se locupletaram, se excederam em desmandos e romperam todos os limites do direito e da ética, se sentem hoje muito desamparados, tendo que viver num clima de normalidade democrática. São peixes fora da água nas ocasiões em que a liberdade impera. Querem, ao invés de prisão perpétua, dar medalhas aos torturadores e assassinos de crianças, mulheres e velhos do período da repressão. Mas o povo argentino sabe o que quer. Ainda tem fresco na memória o pesadelo que foi obrigado a viver até outubro de 1983, quando num desabafo nacional, consagrou nas urnas a Raul Alfonsin.

A América do Sul inteira está de olho na marcha dos acontecimentos na Argentina. Certamente, o estado de sítio não será suficiente para conter a sanha dos que se sentem deslocados em sociedades democráticas. Dos que cultuam a imagem de um Adolf Hitler. Dos que conhecem apenas o argumento da violência para impor opiniões e obter vantagens de que não são merecedores. Mas a população argentina saberá, certamente, defender suas instituições e exorcizar os pavorosos fantasmas do golpismo. Já é hora desse processo tão desabonador para a imagem do Terceiro Mundo ser detido. E ninguém melhor do que Alfonsin para dar mais esse exemplo.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 26 de outubro de 1985)


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