Thursday, June 04, 2015

Vencedor a despeito das circunstâncias

Pedro J. Bondaczuk

A ascensão social de quem tem a desventura de nascer em um lar pobre, de pais semi-alfabetizados ou analfabetos, ainda é façanha considerável e raríssimos conseguem essa vitória. E isso neste século XXI, com tantos recursos de comunicação e de informação, com sucessivas campanhas de alfabetização e com oportunidades que há apenas duas ou três décadas eram quase impossíveis, se não impossibilidades absolutas. Essa é dura a realidade não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo – diria em quase todas. A exceção, talvez, seja a Suécia, com seu Estado de Bem-Estar Social. Imaginem, então, o desafio que era alguém ascender socialmente no século XIX, principalmente na sua primeira metade!!!! E no Brasil!!!

Que chances teria de subir da classe mais pobre (já nem digo para a elite, mas para a classe média, mesmo que baixa), um sujeito que, além de pobre, de pais com pouca instrução, era mulato, gago, de saúde frágil,(na verdade doente), com problemas nervosos e frequentes ataques de epilepsia e que, para complicar tudo, tivesse poucas chances de estudar? Praticamente, nenhuma, não é mesmo? Ousaria dizer que eram de uma em uma centena de milhão. Creiam, não é exagero.

Todavia, um sujeito com todas essas características, sem faltar nenhuma, encarando circunstâncias tão dramáticas, nascido numa casinha tosca,  modestíssima (praticamente um barraco) do Morro do Livramento, no Rio de Janeiro – e cedida pelos proprietários “de favor” á sua família – neto, por parte de pai, de escravos alforriados, de saúde fragílima, conseguiu esse “milagre” (pode-se assim dizer). Tinha, a seu favor, um talento inato, que soube, todavia, identificar, desenvolver e ampliar à excelência, a ponto de ser reconhecido, cento e sete anos após sua morte, como referencial, como o top dos tops, como parâmetro de qualidade da sua atividade. Esse homem foi Machado de Assis.

Dos escritores brasileiros do seu tempo (e dos tempos anteriores à sua época) foi dos raros que jamais freqüentaram qualquer faculdade. Mal cursou uma problemática escola pública de periferia, em que sequer se destacou. Contudo... tornou-se, consensualmente, o maior nome da literatura nacional, co-fundador da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente, com gestão modelar e competentíssima. Atuou, e com destaque, em praticamente todos os gêneros literários que se possa imaginar. Foi, simultaneamente, poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. Ufa!!!

Sua extensa obra, que nunca perdeu a atualidade, é constituída de nove romances, de mais de duzentos contos, de cinco coletâneas de poemas e sonetos e de mais de seiscentas crônicas, além de uma infinidade de artigos políticos que nos esclarecem sobre como era o Brasil de então. Era uma sociedade nacional escravagista, turbulenta e atrasada em todos os sentidos, com escassas décadas de independência, lutando para conservar a unidade face dezenas de movimentos separatistas pipocando por seu vasto e pouco desbravado território de dimensões continentais.  Machado de Assis testemunhou, e registrou fielmente, com verdade e autenticidade (sem dourar a pílula), fundamentais mudanças no País, como a antecipação da maioridade de Dom Pedro II, a abolição da escravatura consagrada pela Lei Áurea e a Proclamação da República, entre outros tantos fatos, hoje temas da nossa História.

Quanto à qualidade de sua obra, esta é incontestável. Quem ousa encontrar defeitos e contradições nela? Estes não existem! Tanto que é estudada e dissecada nas mais importantes universidades do mundo e, passados tantos anos da sua produção, ainda assombra e espanta os maiores experts mundiais de Literatura. Machado de Assis foi, antes e acima de tudo, pioneiro. Rompeu as amarras do formalismo da linguagem, considerado regra em seu tempo e criou um estilo próprio: coloquial, simples, acessível a qualquer pessoa medianamente instruída, sem pirotecnias verbais e nem floreios inúteis e desnecessários. Enfatizou conteúdo em vez da forma, geralmente empolada e pedante, como se fazia então. Pode-se dizer que foi o precursor do modernismo, antes mesmo que este surgisse na culta Europa e muito antes do movimento de 1922. Precedeu Sigmund Freud, o “pai da psicanálise”, em alguns anos, ao vasculhar a psique humana em busca de explicações para determinados comportamentos. Foi ou não foi um gênio?

E tudo isso foi feito por alguém que nasceu em lar humílimo, de família paupérrima (o pai era pintor de paredes e a mãe, lavadeira), com escassas oportunidades de ter educação formal de qualidade que, ademais, era mulato, neto de escravos, em um país tão preconceituoso em que a escravidão era considerada coisa normalíssima e no qual quem se opusesse a essa imoral e absurda exploração do homem pelo homem era tido por subversivo, perseguido pelas leis e condenado pela sociedade. E, além de tudo, era gago e de saúde frágil. Tinha, pois, todos os ingredientes para ser rejeitado e para fracassar.  Não fracassou!

Imaginem o preconceito e as tantas ofensas que Machado de Assis teve que engolir, de indivíduos medíocres e arrogantes, tanto que a História sequer registra quem foram! Seus agressores foram esquecidos até pelos descendentes. Para nós, desta geração, tecnicamente “nunca existiram”, pela mais absoluta impossibilidade de identificá-los. Mas julgavam-se “os tais”. O tempo é, mesmo, implacável senhor da razão. Machado de Assis tinha talento sem limites para as letras. Mas não apenas isso. Somente ser talentoso não assegura sucesso a ninguém em nada. Quando muito, ajuda. Machado de Assis era dotado de uma curiosidade sem limites. Lia, lia e lia, demais, e de tudo. Observava tudo e todos com a atenção e a concentração de um cientista diante de algum espécime raro. E se informava a não mais poder, em uma época em que a informação não era democrática e fartas. Como hoje, acessível, só, a pouquíssimos privilegiados. Mas seu principal segredo, a meu ver, foi outro. Foi a coragem de ousar, mas com competência e responsabilidade. Deu no que deu!!!!


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