Vencedor a despeito das
circunstâncias
Pedro
J. Bondaczuk
A ascensão social de
quem tem a desventura de nascer em um lar pobre, de pais semi-alfabetizados ou
analfabetos, ainda é façanha considerável e raríssimos conseguem essa vitória.
E isso neste século XXI, com tantos recursos de comunicação e de informação,
com sucessivas campanhas de alfabetização e com oportunidades que há apenas
duas ou três décadas eram quase impossíveis, se não impossibilidades absolutas.
Essa é dura a realidade não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo –
diria em quase todas. A exceção, talvez, seja a Suécia, com seu Estado de
Bem-Estar Social. Imaginem, então, o desafio que era alguém ascender
socialmente no século XIX, principalmente na sua primeira metade!!!! E no
Brasil!!!
Que chances teria de
subir da classe mais pobre (já nem digo para a elite, mas para a classe média,
mesmo que baixa), um sujeito que, além de pobre, de pais com pouca instrução,
era mulato, gago, de saúde frágil,(na verdade doente), com problemas nervosos e
frequentes ataques de epilepsia e que, para complicar tudo, tivesse poucas
chances de estudar? Praticamente, nenhuma, não é mesmo? Ousaria dizer que eram
de uma em uma centena de milhão. Creiam, não é exagero.
Todavia, um sujeito com
todas essas características, sem faltar nenhuma, encarando circunstâncias tão
dramáticas, nascido numa casinha tosca,
modestíssima (praticamente um barraco) do Morro do Livramento, no Rio de
Janeiro – e cedida pelos proprietários “de favor” á sua família – neto, por
parte de pai, de escravos alforriados, de saúde fragílima, conseguiu esse
“milagre” (pode-se assim dizer). Tinha, a seu favor, um talento inato, que
soube, todavia, identificar, desenvolver e ampliar à excelência, a ponto de ser
reconhecido, cento e sete anos após sua morte, como referencial, como o top dos
tops, como parâmetro de qualidade da sua atividade. Esse homem foi Machado de
Assis.
Dos escritores
brasileiros do seu tempo (e dos tempos anteriores à sua época) foi dos raros
que jamais freqüentaram qualquer faculdade. Mal cursou uma problemática escola
pública de periferia, em que sequer se destacou. Contudo... tornou-se,
consensualmente, o maior nome da literatura nacional, co-fundador da Academia
Brasileira de Letras e seu primeiro presidente, com gestão modelar e
competentíssima. Atuou, e com destaque, em praticamente todos os gêneros
literários que se possa imaginar. Foi, simultaneamente, poeta, romancista,
cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário.
Ufa!!!
Sua extensa obra, que
nunca perdeu a atualidade, é constituída de nove romances, de mais de duzentos
contos, de cinco coletâneas de poemas e sonetos e de mais de seiscentas
crônicas, além de uma infinidade de artigos políticos que nos esclarecem sobre
como era o Brasil de então. Era uma sociedade nacional escravagista, turbulenta
e atrasada em todos os sentidos, com escassas décadas de independência, lutando
para conservar a unidade face dezenas de movimentos separatistas pipocando por
seu vasto e pouco desbravado território de dimensões continentais. Machado de Assis testemunhou, e registrou
fielmente, com verdade e autenticidade (sem dourar a pílula), fundamentais
mudanças no País, como a antecipação da maioridade de Dom Pedro II, a abolição
da escravatura consagrada pela Lei Áurea e a Proclamação da República, entre
outros tantos fatos, hoje temas da nossa História.
Quanto à qualidade de
sua obra, esta é incontestável. Quem ousa encontrar defeitos e contradições
nela? Estes não existem! Tanto que é estudada e dissecada nas mais importantes
universidades do mundo e, passados tantos anos da sua produção, ainda assombra
e espanta os maiores experts mundiais de Literatura. Machado de Assis foi,
antes e acima de tudo, pioneiro. Rompeu as amarras do formalismo da linguagem,
considerado regra em seu tempo e criou um estilo próprio: coloquial, simples,
acessível a qualquer pessoa medianamente instruída, sem pirotecnias verbais e
nem floreios inúteis e desnecessários. Enfatizou conteúdo em vez da forma,
geralmente empolada e pedante, como se fazia então. Pode-se dizer que foi o
precursor do modernismo, antes mesmo que este surgisse na culta Europa e muito
antes do movimento de 1922. Precedeu Sigmund Freud, o “pai da psicanálise”, em
alguns anos, ao vasculhar a psique humana em busca de explicações para
determinados comportamentos. Foi ou não foi um gênio?
E tudo isso foi feito
por alguém que nasceu em lar humílimo, de família paupérrima (o pai era pintor
de paredes e a mãe, lavadeira), com escassas oportunidades de ter educação
formal de qualidade que, ademais, era mulato, neto de escravos, em um país tão
preconceituoso em que a escravidão era considerada coisa normalíssima e no qual
quem se opusesse a essa imoral e absurda exploração do homem pelo homem era
tido por subversivo, perseguido pelas leis e condenado pela sociedade. E, além
de tudo, era gago e de saúde frágil. Tinha, pois, todos os ingredientes para
ser rejeitado e para fracassar. Não
fracassou!
Imaginem o preconceito
e as tantas ofensas que Machado de Assis teve que engolir, de indivíduos
medíocres e arrogantes, tanto que a História sequer registra quem foram! Seus
agressores foram esquecidos até pelos descendentes. Para nós, desta geração,
tecnicamente “nunca existiram”, pela mais absoluta impossibilidade de
identificá-los. Mas julgavam-se “os tais”. O tempo é, mesmo, implacável senhor
da razão. Machado de Assis tinha talento sem limites para as letras. Mas não
apenas isso. Somente ser talentoso não assegura sucesso a ninguém em nada.
Quando muito, ajuda. Machado de Assis era dotado de uma curiosidade sem
limites. Lia, lia e lia, demais, e de tudo. Observava tudo e todos com a
atenção e a concentração de um cientista diante de algum espécime raro. E se
informava a não mais poder, em uma época em que a informação não era
democrática e fartas. Como hoje, acessível, só, a pouquíssimos privilegiados.
Mas seu principal segredo, a meu ver, foi outro. Foi a coragem de ousar, mas
com competência e responsabilidade. Deu no que deu!!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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