Testemunha de um tempo
e de uma cidade
Pedro
J. Bondaczuk
O Rio de Janeiro em que
Machado de Assis nasceu, cresceu, amadureceu (física, intelectual e
literariamente), viveu, morreu e onde está sepultado era (óbvio) muito
diferente da vibrante (posto que tão problemática), metrópole atual. Dessa que
se prepara intensamente para receber a primeira olimpíada a ser disputada na
América do Sul: a de 2016. Fosse a mesma, ainda hoje, seria o mais atrasado dos
burgos de algum dos mais remotos grotões deste país-continente, em termos de
“modernidade”. Quando o escritor nasceu, a cidade não tinha, por exemplo,
esgoto, eletricidade, que ainda nem havia sido descoberta e domesticada em
lugar algum, e muito menos ali e eram raríssimas as ruas (praticamente meras
picadas) que dispunham de algum tipo de calçamento. Não tinha telefone, ônibus,
trens, automóveis, nada. Rigorosamente nada, em termos de conforto e de
recursos mínimos de comunicação e de transportes. Não dispunha de cinema, de
rádio, de televisão e de nenhum meio de difusão e de entretenimento dos tempos
atuais.
O Cristo Redentor? Nem
pensar! Como também sequer se cogitava, nem mesmo em sonhos, de um Maracanã.
Afinal, o brasileiro desconhecia o futebol, esporte exótico que recém surgia
entre a elite, entre a nata dos estudantes ingleses de famílias abastadas.
Mesmo quando finalmente chegou ao Brasil, em fins do século XIX, Machado de
Assis não lhe deu nenhuma importância. Claro que Copacabana, Ipanema, Leblon
etc., enfim toda a charmosa Zona Sul, com seus arranha-céus imponentes, seu
trânsito agitado, seus bares e boates e suas praias sempre lotadas de cariocas
e de turistas provenientes de todas as partes do Brasil e do mundo não tinham
nada, nadíssima da realidade de hoje.
Bondinho do Pão de
Açúcar? Ora, ora, ora... Escolas de samba? Também não se pensava nisso! Aliás,
o próprio ritmo nem mesmo havia sido criado ainda, embora houvesse seu
“embrião”, o que viria a redundar nele, mas restrito aos terreiros de escravos.
A escravidão, recorde-se, era coisa “normal” no Brasil (e, claro, no Rio de
Janeiro), símbolo, até mesmo, de “status” da elite endinheirada Enfim, a cidade não tinha coisa alguma do que
hoje caracteriza essa metrópole vibrante, que reúne, à beleza natural com que a
natureza a dotou, de magníficas obras humanas, o que faz dela a maravilha dos
trópicos, esta Cidade Maravilhosa que tanto encanta e fascina quem a conhece e
que desperta curiosidade e fantasias em quem contempla suas imagens por
fotografias, por filmes e por transmissões de TV.
O Rio de Janeiro,
porém, tem que ser avaliado no seu devido contexto. E a cidade de quando
Machado de Assis nasceu já era, disparado, a mais importante do País e,
atrevo-me a dizer, da própria América Latina. Era a capital, por exemplo, de um
vasto, mas despovoado, Império, recém independente. Na época do nascimento do escritor
(em 21 de junho de 1839) o Brasil estava prestes a completar escassos dezessete
anos de nação independente. Estava sob o regime de regência provisória, dada a
minoridade de Dom Pedro II, a quem caberia, constitucionalmente, ocupar o trono
assim que se tornasse maior de idade, após a abdicação do seu progenitor, o
polêmico “pai da independência” brasileira. Lutava para conservar a unidade
política e territorial, diante dos inúmeros movimentos separatistas que
pipocavam de Norte a Sul de seu vasto território, carente de comunicação.
Machado de Assis, que
praticamente nunca se afastou do Rio de Janeiro em toda sua vida – a exceção
foram duas viagens à cidade serrana de Nova Friburgo, para onde viajou por
questões de saúde – testemunhou toda a evolução, a metamorfose, o vertiginoso
progresso da sua terra natal. E não somente se limitou a testemunhar, como
registrou tudo isso em seus livros, nos romances e contos que escreveu, em que
a hoje vibrante metrópole foi até mais do que mero cenário. Foi, sem exagero,
personagem “viva”. Ele viu (e registrou) a chegada da eletricidade, o advento
do bonde, a implantação da telefonia, as primeiras experiências com o cinema e
até a chegada do automóvel. Descreveu pessoas, “analisando”, até mesmo, o que
elas pensavam e por que (antecedeu dessa forma em alguns anos Sigmund Freud,
pai da psicanálise, na análise das motivações e atitudes humanas) com suas
modas, costumes, formas de se divertir e de ganhar a vida etc.etc.etc. Enfim,
testemunhou fatos e hábitos de seu tempo, como convém a bons escritores. E ele,
nem é preciso reforçar, foi excelente, foi inovador, foi genial!
Cito (apenas a título
de exemplo) – citação que “empresto” de Lúcia Miguel Pereira, uma de suas
principais biógrafas – a descrição que Machado de Assis fez do casarão
principal e da capela da chácara do Morro do Livramento em que nasceu: "A
casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de
Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do outro século. Era uma
edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança,
conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões
enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao
serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além
dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho
que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos,
ou rezar a ladainha aos sábados".
Essa descrição consta
do livro “Casa Velha” (publicado em 1943 graças ao empenho de Lúcia Miguel
Pereira), estampado, originalmente, em forma de fascículos, entre janeiro de
1885 e fevereiro de 1886, na revista carioca “A Estação”. Cito, também, trecho
do excelente texto, datado de 1º de setembro de 2008, do saudoso jornalista e
escritor Daniel Piza (a respeito de quem discorrerei, com mais detalhes,
oportunamente) em que ele descreve qual era o cenário da meninice de Machado de
Assis e como a cidade se transformou ao longo de sua vida: “O Rio de Janeiro de
sua infância era o do morro do Livramento e da região próxima ao cais, uma
grande vila de ruas estreitas onde os dejetos das casas eram levados por negros
em tinas na cabeça e lançados ao mar. Lampiões de azeite de peixe faziam a iluminação
e cavalos e burros garantiam o transporte. Machado viu sua cidade ganhar bonde,
ferrovia, iluminação elétrica, avenidas, telégrafo e bolsa de valores. Antes de
morrer, ainda acompanhou o surgimento dos carros e dos precursores do cinema”.
Testemunhou tudo isso e registrou para a posteridade.
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