Polêmica (e deliciosa)
tradução de Machado de Assis
Pedro
J. Bondaczuk
As mulheres têm, de
fato, queda pelos tolos ao escolherem parceiros para se relacionar? O escritor
e advogado belga, Victor-Georges Hénaux, acreditava que sim. Tanto que escreveu
um ensaio satírico, transformado em livro, publicado em 1850, sem nenhum
destaque, em seu país de origem, mas que fez um barulho danado entre nós. Não
se sabe como essa obra chegou ao Brasil e, principalmente, como foi parar em
mãos de Machado de Assis. O que sei é que provocou controvérsia dos diabos, que
ainda persiste, até hoje, em alguns círculos não tão bem informados, envolvendo
o Bruxo do Cosme Velho. Vamos aos fatos.
Ocorre que Victor
Hénaux era (e ainda é) ilustríssimo desconhecido na Europa, sujeito obscuro do
qual pouco (ou virtualmente nada) se sabe. Tanto que há controvérsias até mesmo
sobre sua nacionalidade. Algumas fontes (escassas e incompletas) dão-no como
francês, embora seja belga de nascimento. Não encontrei referências sequer
sobre quando e onde nasceu. E nem a mesma coisa quanto à data e local de sua
morte. E, para complicar ainda mais, não se sabe se escreveu e publicou outras
obras além da citada e, em caso afirmativo, quais e quando.
E onde entra Machado de
Assis em toda essa história? Ele traduziu, e publicou em fascículos, entre
abril e maio de 1861, o livro de Hénaux, cujo título original era (ou é, pois
essa obra pode ser encontrada hoje, com a maior facilidade, na internet) “De
l’amour des femmes pour les sots”, na revista “A Marmota”. “E daí”, perguntará
o leitor, que nunca soube dessa controvérsia, atônito pelo envolvimento de
Machado na história, “qual o problema?”. Bem, não é um probleminha. É um
problemão! Ocorre que a revista publicou os capítulos dessa obra sem nenhuma
indicação de autoria. Não esclareceu que se tratava de uma tradução e nem quem
foi o tradutor. Em alguma parte, aparecia, meio que perdido, o nome de Machado
de Assis, mas sem indicar por que. Foi o que bastou para que se concluísse que
ele era o autor desse delicioso ensaio satírico.
Nesse mesmo ano, o
seriado de “A Marmota” foi publicado em livro. Todavia, nada de aparecer o nome
de Henaux. Aparecia o de Machado de Assis, mas agora como tradutor. Mas do que?
De quem? Nada! Apesar disso, todo o mundo, sem exceção, continuou achando que o
Bruxo do Cosme Velho (que por essa época não era conhecido por esse apelido e
não havia lançado, ainda, nenhum livro, nem mesmo “Crisálidas”) era o
verdadeiro autor de “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Os poucos que notaram
a referência de que ele havia “apenas” traduzido essa obra, acharam que houvera
equívoco. Que a autoria, de fato, era de Machado. E os raríssimos que
eventualmente chegaram ao nome de Victor-Georges Hénaux entenderam,
erroneamente, que este era nada mais do que mero pseudônimo do escritor
brasileiro. Mas... não era.
Tanto a confusão
persistiu que, quando da publicação das obras completas de Machado de Assis,
quando ele já era consagrado e reconhecido como um dos maiores escritores da
Literatura mundial, o erro foi mantido. Aliás, foi ampliado. O livro foi
publicado como sendo “peça teatral” do Bruxo do Cosme Velho, embora não tenha
absolutamente nada a ver com teatro. Confesso que entrei de gaiato nessa
confusão. Citei, em duas crônicas distintas, esse livro como sendo de Machado
de Assis, que é como o volume que tenho em mãos o apresenta. Aproveito, pois, o
ensejo para retificar aquelas minhas citações.
Cá para nós, isso não
diminui em nada a grandeza de Machado de Assis e muito menos mancha sua reputação.
Muito pelo contrário. Ressalta sua qualidade de tradutor. Ao contrário do que
muitos que traduzem obras de outras línguas fazem, ou seja, que seguem
literalmente os significados das palavras – e esbarram em expressões
idiomáticas intraduzíveis, resvalando, não raro, para o ridículo – Machado
praticamente reescreveu o livro, “reinterpretando-o”, num português correto,
claro, simples e cristalino, inteligível a todos. Seu estilo característico
está ali, todinho, sem tirar e nem pôr, tornando o texto tão fascinante e
irônico, mas sem soar desagradável ou agressivo.
A sempre providencial
enciclopédia eletrônica Wikipédia informa: “Em 2008, a Edunicamp (editora da
Unicamp) lançou uma edição organizada por Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane
Fernanda Cunha Ferreira que põe fim à polêmica: trata-se de uma edição
bilíngüe, tornando finalmente acessível o texto de Hénaux e permitindo a
comparação que demonstra ser o texto de Machado de Assis, de fato, uma
tradução”. Querem saber? Li ambas as
versões – a original, em francês, e a traduzida (diria interpretada ou
reescrita) pelo escritor brasileiro – e esta última dá de dez a zero na
primeira, em termos de graça, charme, ironia e humor. Não há termos de
comparação.
Eu, se fosse o escritor
belga, daria, de papel passado e tudo, co-autoria do livro a Machado de Assis.
Afinal, foi o brasileiro que o tirou do absoluto ostracismo (pelo menos aqui no
Brasil) revelando o que pensava, sobretudo das mulheres e da sua possível (não
seria provável?) propensão para os tolos, os saradões e atléticos, mas (salvo
exceções) com um amendoim seco por cérebro. E olhem que o Bruxo do Cosme Velho,
na época, sequer havia começado, ainda, sua notável e inigualável carreira
literária...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment