Sunday, June 21, 2015

Polêmica (e deliciosa) tradução de Machado de Assis

Pedro J. Bondaczuk

As mulheres têm, de fato, queda pelos tolos ao escolherem parceiros para se relacionar? O escritor e advogado belga, Victor-Georges Hénaux, acreditava que sim. Tanto que escreveu um ensaio satírico, transformado em livro, publicado em 1850, sem nenhum destaque, em seu país de origem, mas que fez um barulho danado entre nós. Não se sabe como essa obra chegou ao Brasil e, principalmente, como foi parar em mãos de Machado de Assis. O que sei é que provocou controvérsia dos diabos, que ainda persiste, até hoje, em alguns círculos não tão bem informados, envolvendo o Bruxo do Cosme Velho. Vamos aos fatos.

Ocorre que Victor Hénaux era (e ainda é) ilustríssimo desconhecido na Europa, sujeito obscuro do qual pouco (ou virtualmente nada) se sabe. Tanto que há controvérsias até mesmo sobre sua nacionalidade. Algumas fontes (escassas e incompletas) dão-no como francês, embora seja belga de nascimento. Não encontrei referências sequer sobre quando e onde nasceu. E nem a mesma coisa quanto à data e local de sua morte. E, para complicar ainda mais, não se sabe se escreveu e publicou outras obras além da citada e, em caso afirmativo, quais e quando.

E onde entra Machado de Assis em toda essa história? Ele traduziu, e publicou em fascículos, entre abril e maio de 1861, o livro de Hénaux, cujo título original era (ou é, pois essa obra pode ser encontrada hoje, com a maior facilidade, na internet) “De l’amour des femmes pour les sots”, na revista “A Marmota”. “E daí”, perguntará o leitor, que nunca soube dessa controvérsia, atônito pelo envolvimento de Machado na história, “qual o problema?”. Bem, não é um probleminha. É um problemão! Ocorre que a revista publicou os capítulos dessa obra sem nenhuma indicação de autoria. Não esclareceu que se tratava de uma tradução e nem quem foi o tradutor. Em alguma parte, aparecia, meio que perdido, o nome de Machado de Assis, mas sem indicar por que. Foi o que bastou para que se concluísse que ele era o autor desse delicioso ensaio satírico.

Nesse mesmo ano, o seriado de “A Marmota” foi publicado em livro. Todavia, nada de aparecer o nome de Henaux. Aparecia o de Machado de Assis, mas agora como tradutor. Mas do que? De quem? Nada! Apesar disso, todo o mundo, sem exceção, continuou achando que o Bruxo do Cosme Velho (que por essa época não era conhecido por esse apelido e não havia lançado, ainda, nenhum livro, nem mesmo “Crisálidas”) era o verdadeiro autor de “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Os poucos que notaram a referência de que ele havia “apenas” traduzido essa obra, acharam que houvera equívoco. Que a autoria, de fato, era de Machado. E os raríssimos que eventualmente chegaram ao nome de Victor-Georges Hénaux entenderam, erroneamente, que este era nada mais do que mero pseudônimo do escritor brasileiro. Mas... não era.

Tanto a confusão persistiu que, quando da publicação das obras completas de Machado de Assis, quando ele já era consagrado e reconhecido como um dos maiores escritores da Literatura mundial, o erro foi mantido. Aliás, foi ampliado. O livro foi publicado como sendo “peça teatral” do Bruxo do Cosme Velho, embora não tenha absolutamente nada a ver com teatro. Confesso que entrei de gaiato nessa confusão. Citei, em duas crônicas distintas, esse livro como sendo de Machado de Assis, que é como o volume que tenho em mãos o apresenta. Aproveito, pois, o ensejo para retificar aquelas minhas citações.

Cá para nós, isso não diminui em nada a grandeza de Machado de Assis e muito menos mancha sua reputação. Muito pelo contrário. Ressalta sua qualidade de tradutor. Ao contrário do que muitos que traduzem obras de outras línguas fazem, ou seja, que seguem literalmente os significados das palavras – e esbarram em expressões idiomáticas intraduzíveis, resvalando, não raro, para o ridículo – Machado praticamente reescreveu o livro, “reinterpretando-o”, num português correto, claro, simples e cristalino, inteligível a todos. Seu estilo característico está ali, todinho, sem tirar e nem pôr, tornando o texto tão fascinante e irônico, mas sem soar desagradável ou agressivo.

A sempre providencial enciclopédia eletrônica Wikipédia informa: “Em 2008, a Edunicamp (editora da Unicamp) lançou uma edição organizada por Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane Fernanda Cunha Ferreira que põe fim à polêmica: trata-se de uma edição bilíngüe, tornando finalmente acessível o texto de Hénaux e permitindo a comparação que demonstra ser o texto de Machado de Assis, de fato, uma tradução”. Querem saber? Li ambas as  versões – a original, em francês, e a traduzida (diria interpretada ou reescrita) pelo escritor brasileiro – e esta última dá de dez a zero na primeira, em termos de graça, charme, ironia e humor. Não há termos de comparação.

Eu, se fosse o escritor belga, daria, de papel passado e tudo, co-autoria do livro a Machado de Assis. Afinal, foi o brasileiro que o tirou do absoluto ostracismo (pelo menos aqui no Brasil) revelando o que pensava, sobretudo das mulheres e da sua possível (não seria provável?) propensão para os tolos, os saradões e atléticos, mas (salvo exceções) com um amendoim seco por cérebro. E olhem que o Bruxo do Cosme Velho, na época, sequer havia começado, ainda, sua notável e inigualável carreira literária...


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