Tuesday, June 02, 2015

Retratos conhecidos



Pedro J. Bondaczuk


O homem, dada sua imprevisibilidade e à impossibilidade de saber o que realmente o semelhante pensa – não o que expressa, mas o que de fato lhe vai no íntimo – é um poço de mistérios, que alimenta a ficção, em especial a literatura. O que são contos, romances, novelas e peças teatrais senão observações de comportamentos alheios, expostas em forma de histórias para prender o leitor (ou espectador)? Reli, ontem, um livro de contos de Machado de Assis. É um tratado de psicologia.

É incrível como o escritor penetra os meandros da alma humana e se orienta em seu interior. É admirável como consegue dissecá-la, virá-la do avesso e revelá-la nos seus mais secretos e recônditos becos, com a precisão de um exímio cirurgião! E faz isso de uma forma espontânea, simples, deliciosa, que nos retém a atenção, sem lançar mão de polêmicas teorias ou de pedantes citações. Não se pode, pois, tratar do tema “genialidade e loucura” em Literatura sem recorrer à vasta, variada e genial obra de Machado de Assis. Gênio, no caso, é ele, que sequer frequentou universidade e foi autodidata, mas se consagrou como um dos mais brilhantes escritores da Literatura mundial. Loucos, por seu turno (e talvez nem tanto), são os vários personagens que criou, com complexos perfis psicológicos.

Não há uma única pessoa de instrução mediana que não entenda o que Machado de Assis escreveu. No entanto, suas análises psicológicas são complexas, profundas, agudas e nos conduzem à introspecção. Muitas das fraquezas de seus personagens identificaremos em nós, se formos sinceros em nossa auto-avaliação, sem concessões de indulgência ou tentativas de nos enganar, o que é mais comum do que estamos dispostos a admitir. Toda a obra machadiana é profunda, sensível, analítica, um exercício de dissecação da alma humana, embora pela variedade de situações, isso fique mais claro em seus contos.

Alguns são obras-primas da literatura mundial, embora no Exterior somente os escritores mais eruditos ou leitores mais cultos já tiveram o privilégio de ler algum livro seu. O melhor parâmetro para medir sua genialidade é a atualidade do que escreveu há mais de cem anos. Expurgados costumes e modismos da época, permanece a essência humana, pouco mutável.

Cruzamos a todo o instante, nas ruas, no trabalho, nos bancos, nos cinemas, nos teatros e nos campos de futebol, com os seus personagens. Somos amigos de alguns deles e inimigos de outros. Muitos têm os nossos traços, nossos cacoetes, nossas grandezas e nossas misérias. E principalmente nossas contradições. Em uma época em que Sigmund Freud era desconhecido no Brasil, Machado de Assis cunhava em seus personagens o que o gênio austríaco levou anos de pesquisas para descobrir.

Um desses contos magistrais do escritor, (entre tantos), é "A Cartomante". Nele o autor realça a imprevisibilidade que cerca a vida. Partindo dessa premissa, sem pedantes exposições filosóficas e nem estéreis recriminações, ridiculariza os que acreditam em destino. E, através de finíssima ironia, perceptível para poucos, ri dos que acham possível alguém desvendar essa coisa inexistente, essa abstração, esse mero potencial, (algo que não aconteceu e pode sequer acontecer para muitos), que denominamos de "futuro". Tolice acreditarmos em adivinhos, que sobrevivem graças aos ingênuos, para não dizermos basbaques. Destaquei esse texto apenas para exemplificar. Do livro que li, não houve um único conto que destoasse ou despertasse interesse menor.

Alguns personagens são tétricos, mas acabam sendo fascinantes exatamente por isso. Como Fortunato, indivíduo que vivia socorrendo acidentados e doentes, cujos atos eram interpretados como virtuosos, repletos de piedade e de solidariedade com os desvalidos característica dos santos. Na verdade, o que apreciava era o sofrimento alheio, que o punha em êxtase. Seu sadismo, posto que mascarado, cuidadosamente dissimulado, raiava à loucura. É personagem de um dos contos, cujo título não me recordo. Quantas pessoas que veneramos pelo seu aparente desprendimento não são movidas por esta tara!?! Ou por outras até piores!?! Mas, como saber?

É impossível conhecer de verdade o nosso semelhante. O máximo que podemos fazer é reunir indícios que dêem pálida idéia de como ele é. A rigor, não podemos afirmar sequer que nos conhecemos. A cada momento, nos surpreendemos com determinadas reações que temos (positivas e negativas), que não supúnhamos que fôssemos capazes e para as quais não encontramos explicação. Augusto Frederico Schmidt escreveu no poema "Retrato do Desconhecido":

"Há vozes que aclaram o ser,
macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
vozes de sonho, de maldição e de doçura".

E Camões resumiu:

"Anda sempre tão unido
o meu tormento comigo,
que eu mesmo sou meu perigo".

O leitor já adivinhou quem é este desconhecido, cujo perfil o poeta tentou traçar. Basta que nos olhemos no espelho. A imagem irá nos desvendar contornos familiares... tão nossos conhecidos...


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