Retratos conhecidos
Pedro J. Bondaczuk
O
homem, dada sua imprevisibilidade e à impossibilidade de saber o que realmente
o semelhante pensa – não o que expressa, mas o que de fato lhe vai no íntimo –
é um poço de mistérios, que alimenta a ficção, em especial a literatura. O que
são contos, romances, novelas e peças teatrais senão observações de
comportamentos alheios, expostas em forma de histórias para prender o leitor
(ou espectador)? Reli, ontem, um livro de contos de Machado de Assis. É um
tratado de psicologia.
É
incrível como o escritor penetra os meandros da alma humana e se orienta em seu
interior. É admirável como consegue dissecá-la, virá-la do avesso e revelá-la
nos seus mais secretos e recônditos becos, com a precisão de um exímio
cirurgião! E faz isso de uma forma espontânea, simples, deliciosa, que nos
retém a atenção, sem lançar mão de polêmicas teorias ou de pedantes citações. Não
se pode, pois, tratar do tema “genialidade e loucura” em Literatura sem
recorrer à vasta, variada e genial obra de Machado de Assis. Gênio, no caso, é
ele, que sequer frequentou universidade e foi autodidata, mas se consagrou como
um dos mais brilhantes escritores da Literatura mundial. Loucos, por seu turno
(e talvez nem tanto), são os vários personagens que criou, com complexos perfis
psicológicos.
Não
há uma única pessoa de instrução mediana que não entenda o que Machado de Assis
escreveu. No entanto, suas análises psicológicas são complexas, profundas,
agudas e nos conduzem à introspecção. Muitas das fraquezas de seus personagens
identificaremos em nós, se formos sinceros em nossa auto-avaliação, sem
concessões de indulgência ou tentativas de nos enganar, o que é mais comum do
que estamos dispostos a admitir. Toda a obra machadiana é profunda, sensível,
analítica, um exercício de dissecação da alma humana, embora pela variedade de
situações, isso fique mais claro em seus contos.
Alguns
são obras-primas da literatura mundial, embora no Exterior somente os
escritores mais eruditos ou leitores mais cultos já tiveram o privilégio de ler
algum livro seu. O melhor parâmetro para medir sua genialidade é a atualidade
do que escreveu há mais de cem anos. Expurgados costumes e modismos da época,
permanece a essência humana, pouco mutável.
Cruzamos
a todo o instante, nas ruas, no trabalho, nos bancos, nos cinemas, nos teatros
e nos campos de futebol, com os seus personagens. Somos amigos de alguns deles
e inimigos de outros. Muitos têm os nossos traços, nossos cacoetes, nossas
grandezas e nossas misérias. E principalmente nossas contradições. Em uma época
em que Sigmund Freud era desconhecido no Brasil, Machado de Assis cunhava em
seus personagens o que o gênio austríaco levou anos de pesquisas para
descobrir.
Um
desses contos magistrais do escritor, (entre tantos), é "A
Cartomante". Nele o autor realça a imprevisibilidade que cerca a vida.
Partindo dessa premissa, sem pedantes exposições filosóficas e nem estéreis
recriminações, ridiculariza os que acreditam em destino. E, através de
finíssima ironia, perceptível para poucos, ri dos que acham possível alguém
desvendar essa coisa inexistente, essa abstração, esse mero potencial, (algo
que não aconteceu e pode sequer acontecer para muitos), que denominamos de
"futuro". Tolice acreditarmos em adivinhos, que sobrevivem graças aos
ingênuos, para não dizermos basbaques. Destaquei esse texto apenas para
exemplificar. Do livro que li, não houve um único conto que destoasse ou
despertasse interesse menor.
Alguns
personagens são tétricos, mas acabam sendo fascinantes exatamente por isso.
Como Fortunato, indivíduo que vivia socorrendo acidentados e doentes, cujos
atos eram interpretados como virtuosos, repletos de piedade e de solidariedade
com os desvalidos característica dos santos. Na verdade, o que apreciava era o
sofrimento alheio, que o punha em êxtase. Seu sadismo, posto que mascarado,
cuidadosamente dissimulado, raiava à loucura. É personagem de um dos contos, cujo
título não me recordo. Quantas pessoas que veneramos pelo seu aparente
desprendimento não são movidas por esta tara!?! Ou por outras até piores!?!
Mas, como saber?
É
impossível conhecer de verdade o nosso semelhante. O máximo que podemos fazer é
reunir indícios que dêem pálida idéia de como ele é. A rigor, não podemos
afirmar sequer que nos conhecemos. A cada momento, nos surpreendemos com
determinadas reações que temos (positivas e negativas), que não supúnhamos que
fôssemos capazes e para as quais não encontramos explicação. Augusto Frederico
Schmidt escreveu no poema "Retrato do Desconhecido":
"Há vozes que aclaram o ser,
macias ou ásperas, vozes de paixão
e de domínio,
vozes de sonho, de maldição e de
doçura".
E
Camões resumiu:
"Anda sempre tão unido
o meu tormento comigo,
que eu mesmo sou meu perigo".
O
leitor já adivinhou quem é este desconhecido, cujo perfil o poeta tentou
traçar. Basta que nos olhemos no espelho. A imagem irá nos desvendar contornos
familiares... tão nossos conhecidos...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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