A infância de Machado
de Assis
Pedro
J. Bondaczuk
A infância de Machado
de Assis foi tudo, menos feliz e digna de ser recordada com saudade, como a de
muitas pessoas. Foi marcada, sobretudo, pela miséria, por preconceito, por perdas de entes queridos, por falta de
perspectiva e, até, por certo abandono. Moacyr Scliar, um dos mais meticulosos
analistas dessa fase da vida do escritor, caracterizou-a como “muito pesada”.
Escreveu mais: “Ele parecia fadado a terminar como operário anônimo, bandido ou
até morto”. Exagero? Não: realidade!!! Pelo menos é o que acontece com a imensa
maioria das pessoas que têm infâncias como a dele. Mas... esta não é uma regra
na vida. Aliás, ela não tem nenhuma, e nem mesmo lógica.
Conheço pessoas que
nasceram e foram criadas em lares saudáveis, em que nunca faltou nada do bom e
do melhor, que tiveram educação esmerada, estudaram nas melhores escolas,
mas... fracassaram. Algumas recorreram ao álcool ou às drogas e se destruíram.
Outras tiveram casamentos infelizes, se desiludiram e abriram mão de lutar por
uma condição de vida melhor. Várias descambaram para a marginalidade e se
perderam, indo mofar em prisões ou mortas em confrontos com a polícia ou com
outros bandidos. Casos como estes sequer são raros.
Em contrapartida, conheço
várias pessoas que nasceram em circunstâncias que não desejo nem para o pior
inimigo. Algumas eram frutos de pais despreparados, não raro absolutamente
analfabetos (quando não filhos indesejados, ás vezes de mães solteiras,
abandonadas pelas famílias tendo que ganhar a vida na prostituição). Outras
tantas foram criadas no maior abandono, ao Deus dará como se diz, passando
fome, sendo vítimas de violência doméstica, influenciadas (mal) pelo ambiente.
Várias chegaram a praticar até pequenos delitos (movidas pela necessidade ou
más companhias). Tais pessoas, todavia, contrariaram a lógica. Em vez de se
tornarem bandidas, de terem morte precoce ou de serem forçadas a viver para
sempre na marginalidade, regeneraram-se. Mudaram de vida e foram bem-sucedidas
em atividades que escolheram, contrariando todos os prognósticos e uma suposta
“lógica” que nem sempre funciona.
Por que isso acontece?
Não sei explicar. Prefiro a explicação do filósofo espanhol José Ortega y
Gasset – expressa em vários de seus livros – que pode ser resumida numa única
citação: “O homem é o homem e suas circunstancias”. Se estas (que não avisam,
não são escolhidas e nem escolhem ninguém, por serem aleatórias) forem
favoráveis e se as pessoas souberem aproveitá-las, podem reverter qualquer situação
e se dar bem. Caso contrário... De acordo com o filósofo espanhol, esse é o
maior desafio do homem: lutar contra as circunstâncias negativas e torná-las
favoráveis. Não é fácil e nem sempre somos bem-sucedidos. Mas é nosso desafio.
Concordo, pois, com
Charles Chaplin quando observou, em uma entrevista, que “uma pessoa pode ter
uma infância triste e mesmo assim chegar a ser muito feliz na maturidade. Da
mesma forma, pode nascer num berço de ouro e sentir-se enjaulada pelo resto da
vida”. A felicidade a que o célebre ator se refere pode tanto ser o sucesso em
uma carreira, quanto em um casamento, em uma missão, em uma vida etc.etc.etc.
Foi o que aconteceu com Machado de Assis. Nosso maior escritor nasceu em 21 de
junho de 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Seu pai, Francisco
José de Assis – como lembra Anita Martins em um texto sobre a infância do
escritor – “era pobre, mulato, escravo liberto e pintor de paredes”. A mãe,
Maria Leopoldina da Câmara Machado, era uma portuguesa, procedente do
Arquipélago dos Açores, e lavadeira.
O casal era agregado da
Dona Maria José de Mendonça Barroso Pereira, viúva do senador Bento Barroso
Pereira. Mulher bondosa e pia, encantou-se pela criança recém-nascida, da qual
fez questão de ser madrinha. Os pais do futuro escritor, em sinal de gratidão,
batizaram a criança com o nome de José (em homenagem a Joaquim Alberto de Sousa
Silveira, cunhado da benfeitora) Maria (prenome da boa senhora) Machado de
Assis. As “perdas” do menino começaram cedo, muito cedo. Em 1845, quando o
garoto estava com seis anos, morreu sua única irmã, aos quatro anos de
idade. E a morte passou a “assediar” a
família. Não tardou para perder a mãe, em 1849, quando tinha só dez anos,
ficando aos cuidados da madrinha. Mas as circunstâncias ruins não davam trégua.
Não tardou para Dona Maria José de Mendonça Barroso Pereira também morrer. O
pai teve que se mudar para São Cristóvão, para a Rua São Luiz de Gonzaga,
número 48. Era uma casa bem mais modesta do que o casarão do Morro do Livramento.
E, para complicar, havia aluguel a pagar.
E agora?
Bem, o pai não tinha
condições de cuidar, sozinho, do menino e ainda prover o sustento dos dois. Não
tardou, pois, em encontrar uma companheira. Era Maria Inês da Silva, com a qual
se casou em 1854. Foi uma circunstância positiva na vida de Machado de Assis,
entre tantas outras negativas. Por que? Porque pouco tempo depois o pai também
faleceu. Mas o então já adolescente encontrou na madrasta uma pessoa que se
interessou por ele e que o cuidou com desvelo e carinho, dentro de suas
possibilidades. Tratava-se de uma doceira de mão cheia que, no entanto, pôs o
rapaz a trabalhar, privando-o de freqüência à escola, já que era preciso prover
o sustento da casa. Mas essa foi uma privação apenas temporária. Todas as
manhãs, o menino saía para a rua, com um tabuleiro na cabeça, a vender os doces
preparados pela madrasta. Contudo as circunstâncias, mesmo assim, atuaram a seu
favor. Como? Sua tutora trabalhava numa escola para meninas e conseguiu que o
adolescente tivesse aulas ali.
Foi uma fase
sacrificada, mas positiva, para Machado de Assis, que dividia seus dias com o
estudo, a venda de doces e, à noite, em vez de descansar, com aulas de francês
dadas por um padeiro imigrante. Para quê aquele garoto tão pobre e frágil
estudava outro idioma, se seu futuro, como tudo indicava, seria o de exercer, e
assim mesmo com muita sorte, algum trabalho braçal? E frise-se que ele não se
contentava em aprender apenas uma única língua estrangeira. Por conta própria,
aprendeu o inglês e o alemão. Eram as “circunstâncias”, todavia, desenhando seu
futuro, que então aparentava ser sombrio e ruim. Não foi. O leitor sabe no que
Machado de Assis se tornou... Fez dos limões azedos que a vida lhe atirou uma
refrescante e saudável limonada (e me perdoem o clichê).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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