Personagem insólito e
empolgante
Pedro
J. Bondaczuk
O que fez de Lincoln
Rhyme, personagem criado por Jeffery Deaver para protagonizar o enredo da
novela policial “O colecionador de ossos”, tão marcante, a ponto de seu criador
o usar em outros tantos enredos e de ter suas peripécias adaptadas para o
cinema? Entendo que seja, sobretudo, a originalidade. É certo que o escritor
correu risco de criar uma figura absolutamente
inverossímil e, por isso, em vez do sucesso que obteve, se arriscou a
descambar para o completo ridículo. Mas... os leitores não entenderam assim. E,
ao fim e ao cabo, são eles que determinam o sucesso ou o fracasso de quem
produz literatura, não é mesmo? Afinal, escrevemos para esse juiz implacável e
não para nós mesmos, ou para nossos colegas de letras ou mesmo para os
críticos. Pelo menos os escritores de bom senso, que se consagram, agem assim.
Por isso se dão bem.
Poucos personagens que
conheço são mais improváveis para a função para o que são criados como Lincoln
Rhyme. Afinal, é como um morto-vivo. Está preso há tempos em uma cama, com
paralisia quase completa e irreversível, só podendo se mexer do pescoço para
cima e o dedo anular da mão esquerda. Sua situação só não é pior que a do gênio
da Física, Stephen Hawking, por não precisar de sintetizador de voz para se
comunicar com o mundo. Falar, podia e como falava! Mas era idêntica ou, no
mínimo, parecida. Dependia de terceiros para tudo, mas tudo mesmo: para se
alimentar, fazer necessidades fisiológicas, ser banhado, medicado etc. etc.etc.
Aliás, sua dependência de Richard Thompson (chamado por Deaver, o tempo todo,
de Thom) era absoluta. Este era misto de enfermeiro, babá, cuidador,
guarda-costas, secretário, faxineiro, enfim, um faz tudo, sem o qual Rhyme certamente
morreria em questão de dias.
Como alguém tão
dependente e vulnerável, incapaz de fazer sozinho sequer os mínimos atos para
assegurar a própria sobrevivência, poderia ser a figura mais temida pelo mundo
do crime, o elemento-chave do Departamento de Polícia de Nova York, encarregado
de solucionar os casos mais intrincados e misteriosos e ser determinante para a
prisão dos mais astutos e letais criminosos? Essa é a pergunta que nos fazemos
tão logo o personagem e suas precaríssimas condições são apresentadas pelo
autor. Contudo, seu talento narrativo e poder de convencimento são tão grandes,
que lá pela metade do enredo, o que em princípio nos parecia absolutamente
fantasioso e inverossímil, se torna naturalíssimo e incontestável.
Ocorre que Rhyme é um criminologista
brilhante, gênio da investigação médico forense, com vários livros sobre o
assunto publicados e com reputação consolidada e irrefutável, praticamente
consensual. Era dos tais que, se não conseguisse solucionar algum caso (e
sempre conseguia) ninguém mais o conseguiria. Incapacitado fisicamente ou não,
era imbatível nesse mister. Deaver, como quem não quer nada, nos dá uma
brilhante aula de investigação médico forense, mas de forma didática e
compreensível para qualquer leigo. Descreve equipamentos, métodos científicos e
tudo o mais de que as polícias melhor equipadas do mundo têm para combater
crimes e deter criminosos. Fiquei com a impressão que o escritor “vestiu a
pele” do seu personagem. Rhyme não é outro se não o próprio Jeffery Deaver.
A primeira impressão
que temos desse personagem marcante é a pior possível. Mau-humorado, amargo,
negativo e sempre brusco, nunca tinha uma palavra amiga para quem quer que
fosse, nem mesmo para Thom, de quem dependia para absolutamente tudo. Seu sonho
era conseguir convencer algum médico para que aceitasse a tarefa de lhe
providenciar “morte assistida”, ou seja, a eutanásia. Já havia contatado quatro
potenciais candidatos a essa tétrica tarefa e todos, por uma razão ou outra,
recusaram. Até que um quinto, o Dr. Berger, aceitasse esse procedimento,
condenado pela ética médica (afinal, a tarefa de qualquer profissional de
Medicina é a de salvar vidas e aliviar sofrimentos e jamais suprimi-la) e por
parcela considerável da opinião pública, ou seja, da sociedade. Impôs, no
entanto, condições para assistir o suicídio programado de Rhyme.
Engenhosa é a maneira
como Jeffery Deaver revela porque o personagem estava naquela situação física
tão precária. Põe a revelação na boca do próprio protagonista, que narra, ao Dr.
Berger: “Isso aconteceu quando eu dava uma busca na cena de um crime. Operários
encontraram um cadáver num canteiro de obras, em uma estação do metrô. Era de
um jovem patrulheiro desaparecido seis meses antes. Havia nessa época um
assassino matando policiais. Recebi o pedido de me encarregar pessoalmente do
caso e, quando.estava dando uma busca no local, uma viga caiu. Fiquei soterrado
durante quase quatro horas”. Sofreu fratura na coluna vertebral e ficou
completamente paralisado. Ou quase.
Em uma nota de pé de
página, Jeferry Deaver explica ao leitor não muito informado, quem foi o médico
apelidado de “Doutor Morte”: “Jack Kevorkian: ex-médico norte-americano.
Dedicou-se. Nos anos 80, a defender o suicídio assistido de pacientes em estado
terminal. Conhecido como ‘Doutor Morte’, Kevorkian diz ter ajudado cerca de 150
pessoas a pôr fim às suas vidas, muitas delas usando o que chamou de ‘máquina
da clemência’, que injetava drogas letais na corrente sangúinea. Em 1991, ele
perdeu a sua licença para praticar a medicina. Em 1999, foi condenado a 25 anos
de prisão, mas conseguiu liberdade condicional em 2007, em razão de seu frágil
estado de saúde”.
Pois foi este
personagem, frágil e vulnerável, cujo sonho era pôr fim à vida (a sua, claro)
que se impôs de tal sorte que se tornou paradigma dos maiores caçadores de
criminosos da literatura policial de todos os tempos. E convenceu tanto a se3us
leitores, a ponto de merecer uma série de livros narrando suas peripécias e
inspirou um filme de muito sucesso. Não vou, óbvio, dar nenhuma indicação sobre
“O colecionador de ossos” e nem sobre outra novela qualquer em que Lincoln
Rhyme é protagonista. Apenas reproduzo, para encerrar estes comentários á
margem, trechos de um texto sobre essa figura intrigante postado no site de
Jeffery Deaver na internet por seus assessores:
“(...) Seu isolamento
do mundo termina quando um assassino começa a espalhar vítimas mutiladas pela
cidade de Nova York. Rhyme é o único que pode detê-lo. Com a ajuda da bela
detetive Amélia Sachs, eles tentam desvendar o labirinto de pistas para evitar
o próximo crime hediondo do Colecionador de Ossos. Uma dupla que se completa e
brilha neste thriller inteligente e empolgante...” A propósito desse personagem
fascinante, intrigante e marcante valho-me da conclusão do jornal californiano
“San Francisco Examiner”, que escreve, sem esconder o entusiasmo: “Rhyme é um
grande personagem! Arrepiante!”. E como é!!!!
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