Friday, January 02, 2015

Algumas análises de um enredo bizarro

Pedro J. Bondaczuk

O enredo de “1984” merece análise mais acurada, notadamente por sua originalidade (para muitos, “bizarrice”), o que, muitas vezes, quando lemos determinado livro, não atentamos devidamente, no afã de chegarmos logo ao final da leitura. Dessa forma, a mensagem que o autor quis transmitir, nesses casos, não fica devidamente clara, como certamente era (ou é) sua intenção. E isso ocorre não por falha dele, ou por sua culpa em qualquer aspecto. Acontece em decorrência da nossa pressa em concluirmos a leitura e chegarmos o mais rápido possível ao desfecho da trama.

Vários leitores solicitaram-me que fizesse uma sinopse desse tão comentado romance, o que, diga-se de passagem, foge dos objetivos destas reflexões diárias. Não a farei. Mas destacarei alguns pontos que considero essenciais nessa obra-prima da literatura distópica, ou seja, a que se contrapõe à utópica por tratar de um futuro sombrio e aterrador, ao contrário do que fazem os utopistas. Para tanto, e para que a análise seja a mais didática possível, recorro, mais uma vez, à enciclopédia eletrônica Wikipédia, que fez excelente trabalho nesse sentido.

O primeiro aspecto que destaco é o tipo de sociedade que Orwell imaginou, onde foi implantada a ditadura mais absoluta que talvez possa existir. Ele lembra, posto que remotamente, muitas que existiram e que ainda existem hoje, com suas características injustiças, preconceitos e contradições. Afinal, passam-se anos, décadas, séculos e milênios, mas o homem praticamente não muda em alguns de seus comportamentos recorrentes, notadamente quanto ao seu egoísmo e sede pelo poder. Wikipédia destaca: “A sociedade é dividida em três escalas: a dos integrantes do partido interno, integrantes do partido externo e os chamados ‘proles’, que representam a classe baixa, sendo esta a maior parte da população, cujos membros são dotados de pouca instrução”.

Para que algum ditador se mantenha no poder, sem que haja contestações e sem que precise recorrer à repressão, é indispensável que a imensa maioria dos habitantes do Estado que tiraniza não seja instruída. E quanto mais ignorante e desinformada ela for, tanto melhor. Não é o que acontece nas piores ditaduras? Claro que sim! Mesmo que o tirano assegure que sua principal preocupação é a educação do povo, ele age em sentido exatamente contrário. Para seus propósitos, quanto mais tapada e crédula for a população, mais facilmente aceitará a tirania e não raro até lutará por sua preservação.

Já a situação geográfica imaginada por Orwell é descrita desta maneira pela Wikipédia: “O território mundial é dividido em três grandes áreas, chamadas de megablocos. O megabloco Oceania, onde o Partido domina, é constituído pelos países da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), parte da África, a Oceania (o continente atual) e o Reino Unido. Já a Eurásia é formada pela Europa continental e os países da ex-URSS e, por fim, a Lestásia é composta por China e Japão. A parte que está em constante disputa para a dominação é a correspondente ao Oriente Médio, parte da África e a divisa entre Eurásia e Lestásia”.

O personagem, principal, ou seja, o ditador, onipotente e onipresente, que Orwell chama de “Grande Irmão” (“Big Brother” no original), não tem seu nome revelado. Embora se manifeste em toda a parte e o tempo todo, ninguém jamais o viu pessoalmente. Chegamos a duvidar que exista. Wikipédia diz o seguinte a seu respeito: “O ‘Grande Irmão’ é a caracterização visual do Partido. Sua imagem está espalhada por todos os lados e nas teletelas com frases do tipo ‘o Grande Irmão zela por ti’ É a figura que deve ser amada e respeitada por todos. O Partido, IngSoc, domina toda a população da Oceania e controla a realidade”.

Cá para nós, ele não lembra os três últimos ditadores da Coréia do Norte, Kim-Il-Sung, Kim-Jong-Il e, principalmente o atual homem forte do país, Kim-Jong-Un, com o “culto à personalidade” que impuseram e que o último ainda impõe, a ferro e fogo, ao seu povo? Claro que sim. Até parece que Orwell inspirou-se nessas figuras assustadoras para compor esse personagem, embora, certamente, não tenha sequer conhecido nenhum dos três membros desta dinastia de tiranos que, no tempo em que “1984” foi escrito, não eram mundialmente conhecidos. Aliás, o mais jovem deles não havia nem mesmo nascido. E o anterior, tinha só sete anos de idade.

Tão absurdos, quanto o “Big Brother”, são os ministérios que ele criou para manter a população dócil à sua tirania. São apenas quatro, cada qual mais bizarro do que o outro. Fico imaginando como seria se eles existissem hoje, em algum lugar. São pitorescos não no nome, mas nas funções que lhes foram atribuídas. Wikipédia assim descreve o primeiro: “O Ministério da Verdade tem a função de alterar todos os registros de acordo com as decisões impostas pelo partido, evitando que haja contradições. Sendo assim, manipula a verdade e é um dos motivos do Partido parecer estar sempre certo”.

O segundo ministério não é menos esquisito. Aliás, de esquisitices, a Oceania de 1984 está farta. Cuida da política externa de “Big Brother”. Wikipédia caracteriza-o assim: “O Ministério da Paz é responsável por organizar a estratégia para a constante guerra”. De pacifista, portanto, não tinha nada, a não ser o nome, totalmente inadequado, claro. Aliás, os outros dois ministérios têm funções tão absurdas como os dois primeiros. Ou seja, opostas ao que seus nomes sugerem. Voltemos à Wikipédia: “O Ministério da Fartura é responsável pelas questões econômicas e principalmente por procurar encobrir a escassez crescente”. Não lembra, caro leitor, pastas similares, aqui no Brasil, no tempo da ditadura militar, que faziam a mesmíssima coisa? Ora se lembra. A Wikipédia arremata o assunto desta maneira: “E por fim o Ministério do Amor, que é responsável por manter a ordem e para isso se utiliza de opressão, dor e tortura”.

Vá amar assim, seu povo, na.... Deixa para lá! Certamente voltarei ao assunto, trazendo mais e mais características de “1984”, que tornam o livro tão original, e tão especial. Pode-se acusar George Orwell de várias coisas (embora eu não concorde com a maioria das acusações), mas jamais de não ter imaginação, ou de não ter sido incisivo e, sobretudo, criativo.


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