Sunday, January 04, 2015

O suprassumo da ambiguidade

Pedro J. Bondaczuk

As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um”. O que o autor desta citação, o escritor e artista plástico português, José Sobral de Almada Negreiros, quis dizer com isso? Que, não raro, o que dizemos, ou o que escrevemos, pode ser (e muitas vezes é) interpretado por nossos interlocutores (ou leitores) com acepção muito diferente da que pretendíamos. Isso, nos expressando em idioma comum, a nós e a quem dirigimos nossas mensagens. Por que? Porque as palavras tendem a ser ambíguas. Nem sempre expressam com exatidão o que pensamos e sentimos.

Nós, que lidamos o tempo todo com elas, por força da nossa atividade profissional, sabemos disso de sobejo. Vivemos “lutando” com o léxico no afã de tornar nossa comunicação a mais clara e exata possível. Nem sempre conseguimos. As palavras são pobres, são paupérrimas, tanto que, volta e meia, novas delas são criadas pelo povo – que é quem verdadeiramente faz a língua – e que, dado seu uso continuado, são incorporadas pelos lingüistas aos dicionários e passam a integrar o patrimônio oficial do idioma. Esse processo ocorre em todas as línguas e dialetos que, se não me falha a memória, ascendem a mais de vinte mil (ou coisa que o valha).

O mesmo Negreiros Almada que citei – pioneiro do Modernismo em Portugal, que morreu em 15 de junho de 1970, aos 77 anos de idade – disse mais a respeito da criação de neologismos: “Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”. E por que agiríamos assim se seus significados fossem definitivos e absolutamente claros, sem nenhuma margem para ambigüidades? Porque elas são pobres. Não expressam – pelo menos em boa parte das vezes – com precisão o que realmente pensamos e sentimos. Não raro, o que dizemos ou escrevemos é interpretado exatamente ao contrário do que pretendíamos.

A poetisa portuguesa, Florbela Espanca, caracterizou bem essa ambigüidade, ao escrever: “Tão pobres somos que as mesmas palavras servem para exprimir a verdade e a mentira”. E tudo isso ocorre mesmo quando não temos intenção deliberada de distorcer significados. Imaginem a confusão de entendimento quando as distorções são deliberadas. Este longo preâmbulo objetiva introduzir comentários sobre um dos aspectos talvez centrais do romance “1984”, de George Orwell que, dada sua relevância, merece dois ou três textos, como este, para serem razoavelmente comentados. Refiro-me à “Novilíngua”.

“O que é isso?”, certamente se perguntará o leitor que não tenha tido o privilégio de ler o livro. É o máximo dos máximos de ambigüidade, um dos recursos fundamentais de “Big Brother” para fazer lavagem cerebral coletiva dos cidadãos submetidos à sua absolutíssima tirania. Foi instituída pelo ambiguíssimo Ministério da Verdade, cuja função era, pasmem, a de estabelecer e institucionalizar a mentira. Era uma língua ainda em construção (ou desconstrução?!!). Quando estivesse pronta (se é que ficaria), tornaria impossível a manifestação de qualquer espécie de oposição ao regime. Pudera! Ao contrário de qualquer idioma, seja ele qual for, que se caracteriza pelo acréscimo de palavras, a Novilíngua tinha, por objetivo, exatamente o contrário. Ou seja, sua supressão. Ora, retirava termos, tanto sinônimos quanto antônimos. Ora fundia palavras, não raro de significados antagônicos, que resultavam em expressões novas, mas absolutamente ambíguas, que não diziam, especificamente, coisa alguma.

Aliás, ambigüidade (ou, como queiram, falsidade) era a marca registrada de Oceania (a superpotência fictícia onde Orwell desenvolve seu enredo). A principal delas era o próprio “Grande Irmão”. Descrito como um homem “de quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis”, o autor insinua, no entanto, que ele podia sequer existir. Apesar da infinidade de cartazes espalhados nas ruas, exibindo sua estampa, com os dizeres “o Grande Irmão está de olho em você”, entre outros, ninguém jamais esteve com ele, ouviu sua voz ou apertou sua mão. A suspeita de sua não existência fica ainda mais intensa face declarações do protagonista central do enredo, Winston Smith – obscuro funcionário do Ministério da Verdade que tenta se opor à ditadura – ao apontar que o líder jamais foi visto por quem quer que seja.

Outra indicação de sua inexistência foi dada por O’Brien – que se passa por aliado do personagem rebelde, mas que, na realidade, estava a serviço do governo –, ao assegurar que “o Big Brother nunca vai morrer”, sugerindo, nas entrelinhas,     que o ditador pode não passar de mera representação simbólica do partido em seu conjunto, o tal IngSoc (interpretado, por muitos, como abreviação,  feita por Orwell, de “Inglaterra Socialista”). Em meio a tanta ambigüidade, não era de se estranhar, portanto, a criação da tal “Novilíngua’, a que não dizia nada de nada e se constituía no suprassumo da anticomunicação. Querem, por exemplo, algo mais maluco e irracional do que o lema do Partido? Sabem qual era? Era: “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”. Coisa de louco, sem dúvida, não é fato? Ou, para ser mais exato, coisa de suma genialidade de um escritor, que ousou imaginar algo tão surpreendente, original e... surreal. Só que... pode existir, sabe-se lá!


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