A concretização do
sonho que o sonhador não viu
Pedro
J. Bondaczuk
O discurso que o pastor
Martin Luther King Junior – o maior
líder negro norte-americano na luta pelos direitos civis – pronunciou, em 28 de
agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, diante de mais
de duzentas mil pessoas, é uma das mais belas, profundas e importantes peças
oratórias que conheço. Passou para a História com o título de “Eu tenho um
sonho”. Foi um pronunciamento profético, premonitório, que previu o que afinal
aconteceu. Pena que o orador não viveu para testemunhar sua concretização. Foi
assassinado, na sacada de um hotel da cidade de Memphis, pouco antes do início
de mais uma marcha pelos direitos civis. Era 4 de abril de 1968. O mundo todo
recebeu, surpreso e consternado, a notícia.
O assassinato foi
assumido por James Earl Ray, que confessou ser o autor do tiro fatal. A exemplo
do que ocorreu com Lee Harvey Oswald, na morte de John Kennedy, pouca gente
acreditou que o suposto assassino tenha, realmente, cometido o crime. Mas... E
a dúvida acentuou-se ainda mais quando, muitos anos depois, Ray negou a autoria
do assassinato, posto que não justificasse a razão da confissão anterior.
Pretendeu encobrir quem? Racistas doentios, mas poderosos, não faltaram (e
ainda não faltam) para terem cometido ato tão torpe e tão covarde. Todos eles,
mesmo que não tenham apertado o gatilho do tiro fatal, têm que ser
considerados, em conjunto, os verdadeiros matadores desse mártir das liberdades
civis. Afinal, criaram clima de ódio propício para que o assassinato fosse
perpetrado.
Pensei em fazer este
registro em 20 de janeiro – que desde 1986 é feriado nacional nos Estados
Unidos, estabelecido como “O dia de Martin Luther King Junior”. Contudo, como
essa data coincide com o meu aniversário... perdi-me entre abraços e
felicitações e acabei não escrevendo nada a propósito. Mas... antes tarde do
que nunca. Tenho profundo respeito e imensa admiração pelos idealistas, pelos
corajosos, por aqueles que sacrificam a própria vida pela realização de um
sonho coletivo. Quem diria que esse homem simples, mas com incomparável
capacidade de liderança, iria se transformar, um dia, numa espécie de herói
nacional, que de fato foi?!
Afinal, Martin Luther
King foi, ao longo de toda sua vida pública, alvo de investigação do FBI. O
então todo-poderoso chefe dessa agência federal norte-americana, John Edgar
Hoover, considerava-o um “perigoso radical”. Suspeitava que fosse comunista,
numa época em que ser, mesmo que remotamente, simpatizante dessa ideologia era
o “crime dos crimes” nos Estados Unidos, num período em que a Guerra Fria
estava no auge. Agentes gravaram seus telefonemas. Espalharam boatos de
supostas infidelidades conjugais. Ameaçaram-no de morte diversas vezes. E, em
carta anônima, “sugeriram-lhe” que cometesse suicídio. O que esses “robôs”
fanatizados pensariam hoje, caso estivessem vivos, ao constatarem que o alvo de
suas perseguições hoje foi alçado à condição de “heroi nacional”, inclusive com
um dia por ano destinado a reverenciar sua memória?
Luther King, pelo que
foi e pelo que representa, merece todo um livro e não somente um texto simples,
como este. Mas tem que ser lembrado, nem que seja com apenas um parágrafo, como
exemplo de coragem, de fé, de determinação e de inabalável convicção em um
ideal. Nada melhor, para homenageá-lo (e reverenciá-lo) do que reproduzir, pelo
menos a parte final, do seu memorável e histórico discurso. E é o que faço,
abaixo, até como obrigação:
“Eu
tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e
montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares
tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne
estará junta.
Esta
é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós
poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé
nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela
sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar
juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e
quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando
todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu
país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram,
terra do orgulho dos peregrinos, de qualquer lado da montanha, ouço o sino da
liberdade! E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar
verdadeiro. E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da
montanha de New Hampshire.
Ouvirei
o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York. Ouvirei o
sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino
da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado. Ouvirei o sino
da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas
não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o
sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas,
ouviu o sino da liberdade.
E
quando isto acontecer, quando nós permitirmos o sino da liberdade soar, quando
nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em
toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de
Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e
católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:
‘Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres
afinal’".
Pena que este heroico
sonhador não viu seu sonho de igualdade, fraternidade e solidariedade, seu
ideal de irrestrita liberdade, se concretizar, pelo menos em parte. Falta
muito, muito mesmo para que isso se efetive integralmente, não só nos Estados
Unidos, mas em toda a Terra, nestes tempos de violência, corrupção e
incertezas. Mas gerações e gerações deverão sua concretização, mesmo que nunca
passe de parcial, à esperança, à determinação, ao idealismo e à fé que moveram
esse homem notável e excepcional.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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