Tuesday, January 06, 2015

Insanidade elevada à enésima potência

Pedro J. Bondaczuk

A “Novilíngua” é um dos aspectos mais originais de “1984”, de George Orwell. Não afirmo que seja “o mais”, até para não ser injusto com o autor. O livro todo – seu enredo, personagens, circunstâncias etc.etc.etc. – é de uma originalidade a toda prova, razão pela qual seu sucesso é tão duradouro e vem atravessando gerações, a despeito de muitos críticos acharem-no “literariamente pobre”. Se tal pobreza de fato existir, ela é mais do que compensada pela originalidade e pelo vigor do ousado e persistente escritor inglês (posto que nascido na Índia). Não só se nota, mas “se sente” em cada linha do romance, que ele foi escrito com garra, determinação e... paixão.

Derivado da “Novilíngua”, ou sua conseqüência natural, Orwell nos apresenta o “Duplipensar”. Trata-se do culto à ambigüidade, tão familiar aos ditadores,  do duplo pensamento, mas simultâneo, numa mesma idéia, o que faz com que o que se pensa, fala e escreve não seja nunca conclusivo e coerente, mas ambíguo e, portanto, inútil. É o indivíduo saber que está errado em suas convicções e ações, mas convencer-se que está certo. É o absurdo e a insanidade elevados à enésima potência. No duplipensar, “inconsciência é ortodoxia”. Lembro o leitor que boa parte dos últimos comentários a propósito de “1984” foi baseada não apenas na leitura (e releitura) do livro, mas em providenciais informações colhidas na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que primam pelo didatismo.

Uma das características da novilíngua era o fato de, com sua utilização, seus usuários não terem como representar pensamentos errados. E muito menos “crimidéias”, expressão criada para definir crime ideológico, ou seja, pensamentos ilegais, entre os quais achar (como seria de se esperar em pessoas inteligentes e sensatas) que tudo no Estado tiranizado pelo onipresente “Big Brother” era absurdo, o que era óbvio. O raciocínio (tortuoso) dos funcionários do Ministério da Verdade (cuja tarefa era criar e incutir na mente dos cidadãos justamente a mentira e somente ela) era: “se não é possível definir algo, é como se esse algo não exista”. Claro que se tratava de mega-sofisma, para dizer o mínimo.

Para não alongar ainda mais esta série de comentários – que, por culpa de leitores que “exigiram” que eu os alongasse muito mais do que pretendia, já vão exageradamente longe – pincei, aqui e ali, algumas expressões da tal novilíngua, que julgo oportuno reproduzir, com o providencial auxílio da Wikipédia. Um desses termos é “impessoa”. Ou seja, “pessoa que não existe mais, da qual todas as referências sobre elas devam ser apagadas dos registros históricos”. Outra é “bempensante”, ou alguém naturalmente ortodoxo. “Crimideter”, por seu turno, era “a faculdade de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer pensamento perigoso. Incluía o poder de não perceber analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao IngSoc”.

Na novilíngua, se algo é bom, não é necessário existir seu oposto, a palavra “mau”. Em seu lugar, se usará “imbom”. O prefixo “im” (ou “in”) tinha a função de antonimizar a expressão.  O novo idioma baniu, também, “ótimo” ou “melhor que bom”. Introduziu, em seu lugar, “plusbom”. E para algo excelente, criou o termo “dupliplusbom”. Uma insanidade, não é mesmo? Como insano, aliás, era tudo o que se referia a essa ditadura fundamentada na mentira e na ambigüidade, desde sua estrutura de poder à forma como seus infelizes e robotizados cidadãos eram tratados.

Os ministérios, na novilíngua, eram designados de forma a que os que não a conheciam não conseguiriam identificar ou teriam imensa dificuldade para tal. O da Verdade, era o “Miniver” ou “Minivero”. O da Paz, era “Minipaz” ou “Minipax”. O Ministério da Fartura, também chamado de Ministério da Riqueza, era designado, na novilíungua, de “Minifarto” ou “Minmirrico”. E o do Amor, de “Miniamo” ou “Miniamor”.Mas o suprassumo da ambigüidade era a palavra “negrobranco”, inexistente dessa forma, com essa grafia, em qualquer idioma do mundo. É tão ambígua, que é quase impossível explicar com clareza, didaticamente, qual o significado que seus criadores lhe deram.

A expressão, como praticamente todas da novilíngua, tinha dois sentidos mutuamente contraditórios. Quando aplicada a um adversário, por exemplo, destinava-se a ridicularizar essa pessoa, dando a entender que ela não sabia sequer distinguir o preto do branco. Já quando se referia a algum membro do IngSoc, simbolizava sua lealdade com a causa do “Grande Irmão”. Ou seja, caracterizava sua coragem de afirmar que preto era branco se esta fosse a vontade do “Big Brother”. Entenderam? Eu não!!

Já imaginaram se esta fosse a língua adotada, por exemplo, por nosso país (ou por qualquer outro)? Quem se entenderia? Como? Não haveria comunicação, nem idéias, livros, jornais etc. e nada que nos caracteriza como seres racionais, inteligentes e civilizados. Seria ou não seria a insanidade elevada à enésima potência? E sabem o que é pior de tudo? É que uma ditadura, como a imaginada por George Orwell em “1984”, pode vir a existir, caso não nos acautelemos e permitamos que tiranos, enlouquecidos e carismáticos, nos convençam que são “salvadores da pátria”.Todo cuidado é pouco! Afinal, a loucura humana não tem limites. Basta atentar para a História.


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