Insanidade elevada à
enésima potência
Pedro
J. Bondaczuk
A “Novilíngua” é um dos
aspectos mais originais de “1984”, de George Orwell. Não afirmo que seja “o
mais”, até para não ser injusto com o autor. O livro todo – seu enredo,
personagens, circunstâncias etc.etc.etc. – é de uma originalidade a toda prova,
razão pela qual seu sucesso é tão duradouro e vem atravessando gerações, a
despeito de muitos críticos acharem-no “literariamente pobre”. Se tal pobreza
de fato existir, ela é mais do que compensada pela originalidade e pelo vigor
do ousado e persistente escritor inglês (posto que nascido na Índia). Não só se
nota, mas “se sente” em cada linha do romance, que ele foi escrito com garra,
determinação e... paixão.
Derivado da
“Novilíngua”, ou sua conseqüência natural, Orwell nos apresenta o
“Duplipensar”. Trata-se do culto à ambigüidade, tão familiar aos
ditadores, do duplo pensamento, mas
simultâneo, numa mesma idéia, o que faz com que o que se pensa, fala e escreve
não seja nunca conclusivo e coerente, mas ambíguo e, portanto, inútil. É o
indivíduo saber que está errado em suas convicções e ações, mas convencer-se
que está certo. É o absurdo e a insanidade elevados à enésima potência. No
duplipensar, “inconsciência é ortodoxia”. Lembro o leitor que boa parte dos
últimos comentários a propósito de “1984” foi baseada não apenas na leitura (e
releitura) do livro, mas em providenciais informações colhidas na enciclopédia
eletrônica Wikipédia, que primam pelo didatismo.
Uma das características
da novilíngua era o fato de, com sua utilização, seus usuários não terem como
representar pensamentos errados. E muito menos “crimidéias”, expressão criada
para definir crime ideológico, ou seja, pensamentos ilegais, entre os quais
achar (como seria de se esperar em pessoas inteligentes e sensatas) que tudo no
Estado tiranizado pelo onipresente “Big Brother” era absurdo, o que era óbvio.
O raciocínio (tortuoso) dos funcionários do Ministério da Verdade (cuja tarefa
era criar e incutir na mente dos cidadãos justamente a mentira e somente ela)
era: “se não é possível definir algo, é como se esse algo não exista”. Claro
que se tratava de mega-sofisma, para dizer o mínimo.
Para não alongar ainda
mais esta série de comentários – que, por culpa de leitores que “exigiram” que
eu os alongasse muito mais do que pretendia, já vão exageradamente longe –
pincei, aqui e ali, algumas expressões da tal novilíngua, que julgo oportuno
reproduzir, com o providencial auxílio da Wikipédia. Um desses termos é
“impessoa”. Ou seja, “pessoa que não existe mais, da qual todas as referências
sobre elas devam ser apagadas dos registros históricos”. Outra é “bempensante”,
ou alguém naturalmente ortodoxo. “Crimideter”, por seu turno, era “a faculdade
de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer pensamento
perigoso. Incluía o poder de não perceber analogias, de não conseguir observar
erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao
IngSoc”.
Na novilíngua, se algo
é bom, não é necessário existir seu oposto, a palavra “mau”. Em seu lugar, se
usará “imbom”. O prefixo “im” (ou “in”) tinha a função de antonimizar a
expressão. O novo idioma baniu, também,
“ótimo” ou “melhor que bom”. Introduziu, em seu lugar, “plusbom”. E para algo
excelente, criou o termo “dupliplusbom”. Uma insanidade, não é mesmo? Como
insano, aliás, era tudo o que se referia a essa ditadura fundamentada na
mentira e na ambigüidade, desde sua estrutura de poder à forma como seus
infelizes e robotizados cidadãos eram tratados.
Os ministérios, na
novilíngua, eram designados de forma a que os que não a conheciam não conseguiriam
identificar ou teriam imensa dificuldade para tal. O da Verdade, era o
“Miniver” ou “Minivero”. O da Paz, era “Minipaz” ou “Minipax”. O Ministério da
Fartura, também chamado de Ministério da Riqueza, era designado, na
novilíungua, de “Minifarto” ou “Minmirrico”. E o do Amor, de “Miniamo” ou
“Miniamor”.Mas o suprassumo da ambigüidade era a palavra “negrobranco”,
inexistente dessa forma, com essa grafia, em qualquer idioma do mundo. É tão
ambígua, que é quase impossível explicar com clareza, didaticamente, qual o
significado que seus criadores lhe deram.
A expressão, como
praticamente todas da novilíngua, tinha dois sentidos mutuamente
contraditórios. Quando aplicada a um adversário, por exemplo, destinava-se a
ridicularizar essa pessoa, dando a entender que ela não sabia sequer distinguir
o preto do branco. Já quando se referia a algum membro do IngSoc, simbolizava
sua lealdade com a causa do “Grande Irmão”. Ou seja, caracterizava sua coragem
de afirmar que preto era branco se esta fosse a vontade do “Big Brother”.
Entenderam? Eu não!!
Já imaginaram se esta
fosse a língua adotada, por exemplo, por nosso país (ou por qualquer outro)?
Quem se entenderia? Como? Não haveria comunicação, nem idéias, livros, jornais
etc. e nada que nos caracteriza como seres racionais, inteligentes e
civilizados. Seria ou não seria a insanidade elevada à enésima potência? E
sabem o que é pior de tudo? É que uma ditadura, como a imaginada por George
Orwell em “1984”, pode vir a existir, caso não nos acautelemos e permitamos que
tiranos, enlouquecidos e carismáticos, nos convençam que são “salvadores da
pátria”.Todo cuidado é pouco! Afinal, a loucura humana não tem limites. Basta
atentar para a História.
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