Insanidades perpetradas
em nome do poder
Pedro
J. Bondaczuk
O romance “1984”, de
George Orwell, é inovador em qualquer aspecto que se o analise, sobretudo no da
insanidade dos tiranos na busca e conservação do poder. O autor conseguiu a
façanha de tornar populares várias expressões que criou, como “Big Brother”, “teletela”,
“novilíngua” e “duplipensar”, entre tantas outras. Essas palavras
incorporaram-se ao cotidiano das pessoas, ao redor do mundo, mesmo entre
aquelas que jamais leram seu livro (ou outro qualquer). São, no meu entender,
aspectos essenciais de “1984”, posto que muitos os considerem exagerados.
Bem... ninguém consegue agradar, simultaneamente, “a gregos e troianos”.
Sobre a “Novilíngua” e
o “Big Brother” já escrevi. Tratarei dessa desconstrução do idioma mais
adiante, por sua relevância no enredo. Antes, julgo necessário comentar, mesmo
que resumidamente, a propósito das “teletelas”, onipresentes em todas as partes
em “Oceania”, o bloco político fictício em que Orwell situa a história que
narrou. Tratava-se do dispositivo mediante o qual o Estado vigiava os passos de
cada cidadão. Simultaneamente, mediante sugestão – repetindo, e repetindo e
repetindo exaustivamente mensagens alusivas – incutia-lhe idéias de absoluta
lealdade e veneração ao “Grande Irmão”. Era, grosso modo, uma espécie de
televisor bidirecional. Ou seja, que tanto permitia que as pessoas “vissem” o
que era de interesse do ditador, quanto, e principalmente, que fossem vistas (e
ouvidas).
Ninguém conseguia
escapar dessa vigilância. Nas “teletelas”, “o papel de parede” (o que os
ultravigiados cidadãos viam quando nenhum programa estava sendo exibido), era a
figura estática, congelada, do “Big Brother”, com seu vasto bigodão. Eram,
portanto, instrumentos por excelência do Estado para controlar os atos de
todos, e o tempo todo, ininterruptamente. As “teletelas” estavam em todos os
lugares, tornando a privacidade impossível. Em suma, transmitiam mensagens,
fazendo uma “lavagem cerebral” coletiva e, ao mesmo tempo, monitoravam o que as
pessoas faziam e o que e com quem falavam. E até o que pensavam.
A esse propósito,
Orwell previu: “Viveremos uma era em que a liberdade de pensamento será de
início um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido”. Deus que nos
livre! Todavia, é algo que pode acontecer, caso não nos empenhemos em preservar
nossa privacidade e a liberdade de pensamento e de opinião. “Teletelas”, e
muito mais sofisticadas e tecnologicamente evoluídas do que as previstas pelo
autor de “1984”, já temos em profusão. E, por questão provavelmente de vaidade,
em vez de cercarmos nossos passos, nossos atos e nossas atitudes de prudente
reserva, os expomos, mais e mais, sem que sejamos coagidos para agir assim, mas
espontânea e deliberadamente.
Outro aspecto que me
chama, particularmente, a atenção, é a descrição feita por Orwell dos métodos
de tortura política utilizados pela ditadura no Estado fictício que criou.
Suponho que a forma cruel e covarde adotada para eliminar todo e qualquer tipo
de oposição já tenha sido imitada por tantos e tantos eméritos torturadores nas
várias tiranias mundo afora. Relatos do tipo, verídicos ou ficcionais, sempre
chocam quem tenha um mínimo de sensibilidade e de humanidade. O escritor narra,
por exemplo, o método adotado por O’Brien, membro poderoso do Partido, o
IngSoc, de inominável crueldade e covardia: o flagelo com ratos.
Em determinado trecho
do livro, esse personagem escabroso diz a Winston Smith, o protagonista da
trama, em tom de velada ameaça: “Eles (os ratos) saltarão sobre seu rosto e
começarão a devorá-lo. Às vezes atacam primeiro os olhos. Às vezes abrem
caminho pelas bochechas e devoram a língua”, explicou cinicamente, como se
estivesse falando de algum assunto inocente e trivial. Torturadores são mesmo
assim: insensíveis e sádicos. O pior é que, quase sempre, escapam ilesos,
quando a ditadura a que serviram é deposta. Raramente pagam por seus nefandos
crimes perante a justiça.
Embora eu nunca tenha
lido a respeito, não tenho dúvidas que algum perverso torturador (todos eles
são), em algum tempo e algum lugar – quem sabe nas ditaduras militares do Chile
de Pinochet, ou da Argentina dos generais, ou do Uruguai, ou do Brasil dos
“anos de chumbo”, ou do Iraque sob o regime de Saddam Hussein – já utilizou
esse método horroroso e covarde. Desconfio, até, que ele possa ter sido usado
(ou ainda esteja) na prisão de segurança máxima da base norte-americana de
Guantanamo, em Cuba, em interrogatórios de supostos “terroristas”. O combate ao
terrorismo (e deve, mesmo, ser combatido, mas por meios legais), frise-se,
tornou-se, há já algum tempo, pretexto para que a injustificável tortura se
tornasse “justificável”, ou pelo menos aceita, até em países com inegável
tradição democrática e, portanto, de respeito aos direitos humanos.
A “Novilíngua” e seu
derivado, o “Duplipensar”, merecem comentários detalhados, que me proponho a
fazer oportunamente, por se tratarem de aspectos sumamente pitorescos de um
enredo magistral, que, mesmo raiando ao absurdo, digno da pena de um Franz
Kafka, é (infelizmente) verossímil, dado o grau de loucura e de insensatez que
o ser humano pode atingir (e não raro atinge), para obter e conservar o poder,
essa coisa volátil e escorregadia que Gabriel Garcia Marquez comparou a “um
peixe” que se tente agarrar com as mãos.
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