Saturday, July 08, 2017

Violência étnica é mal muito antigo


Pedro J. Bondaczuk


Os povos que habitaram, desde a Idade da Pedra, o território do que já foi o Império Russo e que desde 1922 é a União Soviética, jamais conheceram um período de liberdade maior do que agora, sob o governo de Mikhail Gorbachev.

Quem conhece a história desse país, sangrenta, trágica, porém grandiosa, sabe que a maior parte de sua população viveu sempre subjugada, numa semi-escravidão. Trata-se, pois, de uma tarefa sobreumana moldar um estado democrático, que realmente mereça esse nome, com tal matéria-prima.

Os conflitos étnicos, numa sociedade tão complexa, acabaram sendo inevitáveis e sempre foram rotina. Movimentos secessionistas são uma tradição nessa colcha de retalhos de multivariadas etnias. Mas jamais, em tempo algum, houve czar ou estadista disposto a trazer ao palco iluminado da opinião pública tais questões para um debate sereno e racional.

Gorbachev, num pronunciamento que fez em 18 de janeiro de 1990, sugeriu aquela que, no seu entender, é a melhor solução para estes seculares conflitos na URSS: "As tensões étnicas se acumulam há décadas, há séculos em alguns casos, e só é possível solucionar a questão das nacionalidades através da criação de uma nova federação soviética".

Sua visão do problema não deixa de ser utópica. Pressupõe uma discussão racional de algo que sempre foi dominado pelo passionalismo, pelas ambições pequenas e mesquinhas e por manipulações de indivíduos bem falantes, mas irresponsáveis, por nunca medirem as conseqüências de suas propostas.

Karl Marx, num texto escrito em 1856, traçou uma análise crítica da mentalidade dos povos que habitavam a Rússia de então. Afirmou: "A lama sangrenta da escravidão mongol, e não a dominação rude do tempo dos normandos, foi o berço de Moscou, e a Rússia moderna é apenas uma metamorfose dessa Moscou mongólica.

O reino moscovita foi alimentado e formado na horrível e execrável escola da escravidão mongólica. Ele se fortaleceu somente porque se tornou virtuose na arte de escravizar. Mesmo depois de sua emancipação, continuou a desempenhar o papel do escravo que se tornou senhor. Pedro, o Grande, foi enfim aquele que reuniu os interesses políticos de escravo mongol com orgulho de um soberano mongol, a quem Gengis Khan no seu testamento deixou o legado da conquista do mundo".

É claro que o fato da gestão de Gorbachev significar a época de maior liberdade para os povos que vivem na URSS não implica em querer que esta não seja ampliada ou permitir que o pouco já conquistado volte a ser suprimido. Argumentou-se muito quanto aos poderes especiais concedidos pelo Soviete Supremo, em meados do ano passado, ao presidente.

Desde então, seus ferrenhos opositores vêm acusando o líder do Cremlin de estar encaminhando o país para uma ditadura. Só que raras vezes ele lançou mão dessa prerrogativa e nas que o fez, não abusou delas. Proibiu, por exemplo, manifestações populares em Moscou, no mês passado, mas não respondeu ao desafio feito pelos partidários de Bóris Yeltsin, que tomaram de assalto as ruas da capital a despeito do decreto proibitivo, à violência, impedindo assim que ocorresse o temido "banho de sangue" que se chegou a propalar.

O líder negro sul-africano, Nelson Mandela, foi muito feliz ao observar, numa entrevista que deu em 14 de fevereiro de 1990: "Mikhail Gorbachev é o único estadista que conheço que teve a coragem de admitir as deficiências do sistema que ele sempre defendeu. Eu nunca ouvi um líder do Ocidente dizer: 'Estávamos errados ao introduzir o colonialismo'".

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 13 de abril de 1991).


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

No comments: