Qualificativos gastos
Pedro J. Bondaczuk
A bondade (que defino, grosseiramente, como
capacidade de ajudar o próximo, de maneira espontânea e
desprendida, só para vê-lo seguro, alegre ou pelo menos
equilibrado, sem esperar a mínima espécie de reconhecimento, sequer
sua gratidão) é uma virtude que sempre me despertou fascínio e
admiração.
Há, inclusive, quem duvide que ela de fato
exista, num mundo tão violento e injusto, caracterizado pela
inconsciência, egoísmo, cobiça e alienação. Creia, caro leitor,
existe, sim, gente com essa virtude, e não é pouca.
Ao longo da minha vida, que já passa de sete
décadas, tive o privilégio não somente de conhecer, mas de ser
socorrido, em momentos de extrema aflição e até de desespero, por
pessoas assim. Escrevo, portanto, a respeito, não com base em ouvir
dizer, nem de mera reflexão acadêmica, mas tendo por fundamento
minha própria experiência.
Frise-se que essa ajuda a quem necessita nem mesmo
precisa ser de caráter material (embora, na maioria das vezes,
seja). Basta, não raro, um simples minuto de atenção, uma palavra
franca e honesta de consolo ou, até mesmo, simples gesto de simpatia
(muitas vezes apenas um olhar), em um momento crítico, desses que
todos temos alguma vez na vida, e que pode, no entanto, fazer a
diferença entre a salvação e a perdição de alguém.
Faço questão de sempre abordar essa nobilíssima
característica nos meus contos, projetando-a em um ou mais
personagens. O pitoresco é que, mesmo tomando por base pessoas que
de fato existem, a descrença na bondade é tamanha, que estes são
considerados inverossímeis por meus críticos, que me acusam de
carregar na tinta quando trato deles.
Nunca o fiz. Pelo contrário. Exagero mesmo é nos
personagens maldosos, dando asas à imaginação. Todavia, são estes
os que os leitores entendem como verdadeiros, autênticos, humanos,
de carne e osso. Nunca entendi essa avaliação.
Fica
claro que, num mundo tão complicado, a maioria duvida da existência
do homem bom. Bondade absoluta, assim como maldade, beleza, feiúra
etc. totais, não há mesmo. Existem graduações do ao redor do zero
até os limites do infinito.
De
todos os indivíduos que já tiveram o privilégio de viver, a
natureza não fez dois que fossem absolutamente iguais. Parecidos
houve (e há) milhões. A igualdade, no entanto... jamais chegou a
ser atingida em lugar ou tempo algum.
O
norte-americano Roger J. Williams explica da seguinte maneira essas
diferenças: "Um grupo de pessoas é algo assim como uma coleção
de bolas de gude de todos os tamanhos e composições e de todas as
cores do arco-íris. Tentem tirar a média dessas bolas, e o
resultado será puro disparate. Tentem tirar a média de sua cor
montando-as em um disco e fazendo-o girar rapidamente. A cor
resultante será um cinza sujo". É exatamente isso, sem tirar e
nem pôr. Há, portanto, desde pessoas que beiram a santidade, embora
com defeitos e contradições, e indivíduos que praticamente são
meros feixes de maldade, com raros, mas existentes lampejos de
bondade.
Muitas
vezes relutamos em praticar atos de caridade, de solidariedade e de
amor ao próximo, por receio de sermos mal interpretados. Nesta época
sombria, de inversão de valores, os bons, não raro, são tachados
de “bobos”. Com receio desse rótulo, muitas vezes optamos pela
covarde omissão e agimos contra nossa própria natureza, voltada
para o bem.
Pouco
importa, porém, o que pensem de nós. Ademais, a bondade sempre nos
beneficia mais do que a quem parece auferir vantagens com ela. Jamais
perdemos quando somos bons, solidários, sinceros, prestativos e
amigos, embora nunca pareça que seja assim. A impressão que nos dá
é que ser mau é que compensa. Que é com a maldade que se adquirem
riquezas, posições, poder e todas essas coisas vãs, que nos
parecem essenciais (sem que, na verdade, sejam) e que, por isso, nos
tentam e nos fascinam.
A
bondade explícita não atrai. Parece não ter charme. Os meios de
comunicação contribuem, e muito, para que se tenha essa impressão.
Os noticiários, por exemplo, dão ênfase, sempre, a crimes e
atrocidades de toda a sorte, em detrimento dos que socorrem, ajudam,
constroem e são bons. As novelas, popularíssimas no Brasil, a ponto
de se tornarem mania nacional, moldam o inconsciente coletivo nessa
direção.
Via
de regra, os vilões são interpretados por atores e atrizes de boa
aparência e grande talento e popularidade. Seus trajes, penteados,
expressões e comportamentos são imitados e servem como parâmetros
de “modernidade”. Ademais, suas atuações são marcantes e
decisivas. Interpretam a maldade com tamanha verdade, que a primeira
reação do telespectador é de repúdio e de revolta com eles (e não
com os personagens que representam). Alguns, até, são agredidos na
rua por pessoas de miolo mole. O subconsciente, porém, é tolo. Sem
que as pessoas se apercebam, lhes cria a convicção de que o mal
compensa, dá status, tem charme. Não tem, evidentemente. Mas é o
que fica parecendo pela trajetória dos vilões nas novelas, que só
se dão mal nos últimos, quando não no derradeiro capítulo.
Os
autores não têm culpa. São artistas e arte não tem nada a ver com
moral. Todavia, as pessoas simples, sem personalidade forte e com
educação carente (a imensa maioria) não entendem as novelas como
obras artísticas. Interpretam-nas como reprodução da vida real e
incorporam, ao seu comportamento, sem mesmo se dar conta, o modo de
agir dos personagens. E, por estranho que pareça, nunca imitam os
“mocinhos”, os bonzinhos, os que passam a história inteira
sofrendo, vítimas dos homens e mulheres maus do enredo.
Machado
de Assis escreveu o seguinte, a respeito, num texto que publicou na
coluna “Notas Semanais”, do jornal “Gazeta de Notícias”, do
Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1878: “Os
qualificativos estão já tão gastos que dizer homem bom, parece que
não é dizer nada. Mas quantos merecem rigorosamente esta
qualificação tão simples e tão certa?”
Pois
é, a palavra está desgastada, desmoralizada e é, a todo instante,
ridicularizada. Por isso, fica a falsa impressão de que a bondade
tenha sido definitivamente expulsa do mundo, notadamente, do coração
das pessoas. Trata-se, porém, de impressão falsa e sumamente
injusta com os que, sem nada pedir em troca, nem mesmo um muito
obrigado, nos são tão providenciais em nossos momentos de
sofrimento, de crises e de aflições.
Machado
de Assis, dotado de rara capacidade de observação, exímio
perscrutador da alma humana, escreve mais: “O grande assombra; o
glorioso ilumina; o intrépido arrebata; o bom não produz nenhum
desses efeitos”. E não produz mesmo. Quando classificamos alguém
dessa forma, nem nós mesmos acreditamos na sinceridade dessa
classificação. Mas o Bruxo do Cosme Velho arremata: “Contudo, há
uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em saber
simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e,
sobretudo, sem arrependimento”.
Aí
é que está a palavra-chave. Muitos dão dinheiro a quem precisa e
depois se arrependem. Acham, no íntimo, que deveriam ter investido,
o que deram de graça a alguém que não conheciam, em algo que lhes
desse qualquer prazer, mesmo que ilusório ou até vicioso.
Outros
entendem que não deveriam ter interferido na vida alheia, dando
conselhos ou até promovendo a conciliação entre marido e mulher.
Ou seja, praticaram atos bons, mas não são, no fundo da alma,
agentes do bem.
Ou
agiram com aparato, alardeando o que faziam. Ou com interesse,
esperando retribuição. Ou com cálculo, na certeza de obter alguma
vantagem mais adiante. E, sobretudo, arrependeram-se do que fizeram.
Fizeram, pois, o bem, é verdade. Não são, todavia, bons.
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