Sunday, July 16, 2017


Qualificativos gastos


Pedro J. Bondaczuk


A bondade (que defino, grosseiramente, como capacidade de ajudar o próximo, de maneira espontânea e desprendida, só para vê-lo seguro, alegre ou pelo menos equilibrado, sem esperar a mínima espécie de reconhecimento, sequer sua gratidão) é uma virtude que sempre me despertou fascínio e admiração.

Há, inclusive, quem duvide que ela de fato exista, num mundo tão violento e injusto, caracterizado pela inconsciência, egoísmo, cobiça e alienação. Creia, caro leitor, existe, sim, gente com essa virtude, e não é pouca.

Ao longo da minha vida, que já passa de sete décadas, tive o privilégio não somente de conhecer, mas de ser socorrido, em momentos de extrema aflição e até de desespero, por pessoas assim. Escrevo, portanto, a respeito, não com base em ouvir dizer, nem de mera reflexão acadêmica, mas tendo por fundamento minha própria experiência.

Frise-se que essa ajuda a quem necessita nem mesmo precisa ser de caráter material (embora, na maioria das vezes, seja). Basta, não raro, um simples minuto de atenção, uma palavra franca e honesta de consolo ou, até mesmo, simples gesto de simpatia (muitas vezes apenas um olhar), em um momento crítico, desses que todos temos alguma vez na vida, e que pode, no entanto, fazer a diferença entre a salvação e a perdição de alguém.

Faço questão de sempre abordar essa nobilíssima característica nos meus contos, projetando-a em um ou mais personagens. O pitoresco é que, mesmo tomando por base pessoas que de fato existem, a descrença na bondade é tamanha, que estes são considerados inverossímeis por meus críticos, que me acusam de carregar na tinta quando trato deles.

Nunca o fiz. Pelo contrário. Exagero mesmo é nos personagens maldosos, dando asas à imaginação. Todavia, são estes os que os leitores entendem como verdadeiros, autênticos, humanos, de carne e osso. Nunca entendi essa avaliação.

Fica claro que, num mundo tão complicado, a maioria duvida da existência do homem bom. Bondade absoluta, assim como maldade, beleza, feiúra etc. totais, não há mesmo. Existem graduações do ao redor do zero até os limites do infinito.


De todos os indivíduos que já tiveram o privilégio de viver, a natureza não fez dois que fossem absolutamente iguais. Parecidos houve (e há) milhões. A igualdade, no entanto... jamais chegou a ser atingida em lugar ou tempo algum.


O norte-americano Roger J. Williams explica da seguinte maneira essas diferenças: "Um grupo de pessoas é algo assim como uma coleção de bolas de gude de todos os tamanhos e composições e de todas as cores do arco-íris. Tentem tirar a média dessas bolas, e o resultado será puro disparate. Tentem tirar a média de sua cor montando-as em um disco e fazendo-o girar rapidamente. A cor resultante será um cinza sujo". É exatamente isso, sem tirar e nem pôr. Há, portanto, desde pessoas que beiram a santidade, embora com defeitos e contradições, e indivíduos que praticamente são meros feixes de maldade, com raros, mas existentes lampejos de bondade.


Muitas vezes relutamos em praticar atos de caridade, de solidariedade e de amor ao próximo, por receio de sermos mal interpretados. Nesta época sombria, de inversão de valores, os bons, não raro, são tachados de “bobos”. Com receio desse rótulo, muitas vezes optamos pela covarde omissão e agimos contra nossa própria natureza, voltada para o bem.


Pouco importa, porém, o que pensem de nós. Ademais, a bondade sempre nos beneficia mais do que a quem parece auferir vantagens com ela. Jamais perdemos quando somos bons, solidários, sinceros, prestativos e amigos, embora nunca pareça que seja assim. A impressão que nos dá é que ser mau é que compensa. Que é com a maldade que se adquirem riquezas, posições, poder e todas essas coisas vãs, que nos parecem essenciais (sem que, na verdade, sejam) e que, por isso, nos tentam e nos fascinam.


A bondade explícita não atrai. Parece não ter charme. Os meios de comunicação contribuem, e muito, para que se tenha essa impressão. Os noticiários, por exemplo, dão ênfase, sempre, a crimes e atrocidades de toda a sorte, em detrimento dos que socorrem, ajudam, constroem e são bons. As novelas, popularíssimas no Brasil, a ponto de se tornarem mania nacional, moldam o inconsciente coletivo nessa direção.


Via de regra, os vilões são interpretados por atores e atrizes de boa aparência e grande talento e popularidade. Seus trajes, penteados, expressões e comportamentos são imitados e servem como parâmetros de “modernidade”. Ademais, suas atuações são marcantes e decisivas. Interpretam a maldade com tamanha verdade, que a primeira reação do telespectador é de repúdio e de revolta com eles (e não com os personagens que representam). Alguns, até, são agredidos na rua por pessoas de miolo mole. O subconsciente, porém, é tolo. Sem que as pessoas se apercebam, lhes cria a convicção de que o mal compensa, dá status, tem charme. Não tem, evidentemente. Mas é o que fica parecendo pela trajetória dos vilões nas novelas, que só se dão mal nos últimos, quando não no derradeiro capítulo.


Os autores não têm culpa. São artistas e arte não tem nada a ver com moral. Todavia, as pessoas simples, sem personalidade forte e com educação carente (a imensa maioria) não entendem as novelas como obras artísticas. Interpretam-nas como reprodução da vida real e incorporam, ao seu comportamento, sem mesmo se dar conta, o modo de agir dos personagens. E, por estranho que pareça, nunca imitam os “mocinhos”, os bonzinhos, os que passam a história inteira sofrendo, vítimas dos homens e mulheres maus do enredo.


Machado de Assis escreveu o seguinte, a respeito, num texto que publicou na coluna “Notas Semanais”, do jornal “Gazeta de Notícias”, do Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1878: “Os qualificativos estão já tão gastos que dizer homem bom, parece que não é dizer nada. Mas quantos merecem rigorosamente esta qualificação tão simples e tão certa?”


Pois é, a palavra está desgastada, desmoralizada e é, a todo instante, ridicularizada. Por isso, fica a falsa impressão de que a bondade tenha sido definitivamente expulsa do mundo, notadamente, do coração das pessoas. Trata-se, porém, de impressão falsa e sumamente injusta com os que, sem nada pedir em troca, nem mesmo um muito obrigado, nos são tão providenciais em nossos momentos de sofrimento, de crises e de aflições.


Machado de Assis, dotado de rara capacidade de observação, exímio perscrutador da alma humana, escreve mais: “O grande assombra; o glorioso ilumina; o intrépido arrebata; o bom não produz nenhum desses efeitos”. E não produz mesmo. Quando classificamos alguém dessa forma, nem nós mesmos acreditamos na sinceridade dessa classificação. Mas o Bruxo do Cosme Velho arremata: “Contudo, há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em saber simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e, sobretudo, sem arrependimento”.


Aí é que está a palavra-chave. Muitos dão dinheiro a quem precisa e depois se arrependem. Acham, no íntimo, que deveriam ter investido, o que deram de graça a alguém que não conheciam, em algo que lhes desse qualquer prazer, mesmo que ilusório ou até vicioso.


Outros entendem que não deveriam ter interferido na vida alheia, dando conselhos ou até promovendo a conciliação entre marido e mulher. Ou seja, praticaram atos bons, mas não são, no fundo da alma, agentes do bem.


Ou agiram com aparato, alardeando o que faziam. Ou com interesse, esperando retribuição. Ou com cálculo, na certeza de obter alguma vantagem mais adiante. E, sobretudo, arrependeram-se do que fizeram. Fizeram, pois, o bem, é verdade. Não são, todavia, bons.


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