O adjetivo sábio
Pedro J. Bondaczuk
O
adjetivo “sábio” é muito vago para o meu gosto. É aplicado, a
torto e a direito, sem grande critério (diria, sem nenhum) até
mesmo aos mais rematados imbecis, que mal-conseguem alinhavar uma ou
outra frase de efeito, sem o mínimo conteúdo, e que passam,
doravante, a ostentar esse pomposo galardão, aceito, sem maiores
críticas e considerações, pelos basbaques. E estes, convenhamos,
não faltam.
Não,
querido leitor, não estou mal-humorado, “bilioso”, como diriam
os antigos, querendo descarregar supostas frustrações no lombo do
primeiro desavisado com que topar. Não se trata disso. Vamos bater
um papo a respeito? Então, vamos lá!
A
constatação do uso inadequado dessa palavra tão nobre (e, no
entanto, tão ambígua) veio-me da leitura (na verdade, da décima
releitura) do ensaio “A Vida sem Princípio”, publicado no livro
“Desobedecendo”, do bom e velho Henry David Thoreau. Você não
conhece quem foi esse ilustre sujeito? Que pena!
Mesmo
sem conhecê-lo pessoalmente (afinal, ele nasceu mais de um século
antes de mim, em 12 de julho de 1817, na cidade norte-americana de
Concord, onde também morreu, quase 45 anos depois, em 6 de maio de
1862), considero-o uma figura fascinante. Não foi por acaso que se
tornou uma espécie de guru, de inspirador do movimento hippie.
Thoreau
escreve, no referido ensaio: “Na maior parte dos casos faz-se um
uso inteiramente equivocado do adjetivo sábio. Como pode alguém ser
sábio se não consegue viver melhor que outros homens?” Sim, como?
Que raio é, então, essa tal sabedoria? Para que serve, se não para
uma vida produtiva, lúcida, equilibrada e feliz?
E
Thoreau prossegue com suas instigantes perguntas: “Bastará ser
mais matreiro e intelectualmente sutil? A Sabedoria está presente
num trabalho enfadonho? Ou dará sempre a lição do seu próprio
exemplo? Haverá uma sabedoria além daquela aplicada à vida? Ou
será ela apenas o moleiro que mói a lógica mais requintada?”
Pois
é, o que é “saber”? Que tipo de conhecimento é o
indispensável? Esse enciclopédico, que você pode encontrar na hora
em que quiser ou precisar, em qualquer boa enciclopédia ou o que lhe
possibilite relacionamentos sólidos e positivos para ambas as
partes, que advém, somente, de uma fértil vivência?
Thoreau
– acrescento, a título de informação – foi, além de ensaísta,
poeta, naturalista e filósofo. É considerado clássico da
literatura norte-americana, estudado em todas as escolas do país,
desde o ensino fundamental ao universitário. E, insisto: foi uma
pessoa fascinante.
Por
exemplo, tão logo se formou em Harvard, decidiu isolar-se disto que
se convencionou chamar de “civilização”. Optou por viver em uma
tosca cabana, às margens do Lago Walden, em um local selvagem e
isolado, com o objetivo de “contemplar a natureza”. Passou dois
anos ali, sem ir à cidade sequer para comprar o essencial, como
fósforos, querosene, sal, açúcar etc.
Prosseguindo
em suas reflexões, no ensaio “A Vida sem Princípio”, Thoreau
faz as seguintes indagações: “É pertinente perguntar se Platão
ganhava sua vida melhor ou com mais sucesso que seus contemporâneos
– ou teria ele, como outros, sucumbido às dificuldades da vida?
Terá sido apenas pela indiferença ou pela empáfia que ele
aparentemente prevaleceu sobre alguns deles? Ou será que sua vida
foi mais fácil pelo fato de uma tia sua ter se lembrado de incluí-lo
entre seus herdeiros?”
Pois
é, podemos considerar o autor de “A República” sábio apenas
pelos seus escritos, ou devemos averiguar sua vida para descobrir se
agiu, ou não, com sabedoria? Você, certamente, já notou, esperto
leitor, que Thoreau utiliza o método socrático, ou seja, o das
sucessivas indagações, para tentar descobrir a verdade. E eu, que
não sou bobo e nem nada, claro, imito seu procedimento.
Se
você ainda não está totalmente convencido da importância desse
sujeito, lhe informo que ele foi o formulador original do conceito de
“desobediência civil”, que foi levado, quase um século depois,
às últimas conseqüências pelo “pai” da independência
indiana, Mohandas Karamanchand Gandhi. E pelos “hippies”, em seus
protestos, nos anos 60, contra a guerra do Vietnã.
Voltando,
porém, ao tema do nosso bate-papo, Thoreau chega à seguinte
conclusão sobre essa questão do uso do adjetivo sábio: “As
maneiras pelas quais se sustenta a maioria dos homens, isto é, a sua
vida, nada mais são do que expedientes circunstanciais, uma fuga do
verdadeiro sentido da vida; isso ocorre principalmente porque os
homens não conhecem nada melhor, mas em parte porque também não
querem nada melhor”. E não é verdade?
Convém
dar mais algumas “pinceladas” no acanhado perfil que tracei desse
sujeito espetacular. Foi, por exemplo, amante inveterado da natureza
(o que o mais distraído dos distraídos leitores já deve ter
percebido). Foi um abolicionista ferrenho, considerando a escravidão
uma das maiores (se não a maior) das patifarias humanas.
Thoreau
não gostava de notícias (que, no seu entender, poluíam “a nossa
mente, templo de reflexões, com banalidades”). Opunha-se ao
trabalho que não fosse prazeroso (degradava o homem). Outras
esquisitices suas: era panteísta, místico, solteirão convicto e
renitente e contrário ao que convencionamos chamar de “boas
maneiras” (que chamo de “frescuras”) que classificava como uma
forma refinada de hipocrisia. Foi ou não foi, portanto, um sujeito
fascinante? Pelo menos não tinha papas na língua (ou na caneta com
que produzia seus textos). Nele, sim, o adjetivo “sábio” cabe,
exato, como uma luva!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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