Ruas
perdidas no tempo
Pedro J. Bondaczuk
As
ruas da Campinas atual estão perdendo o encanto que um dia me despertaram.
Continuo amando de paixão esta cidade, mas... Há tempos que esses caminhos que
tantas vezes trilhei já não são mais um lugar seguro para mim e para os demais
moradores e/ou transeuntes. Antes, quando a cidade era um burgo pacato e
acolhedor, embora com inequívoca vocação para o progresso, era comum ver casais
de namorados passeando tranqüilos, de mãos dadas, ao cair da tarde, à saída das
matinês dos cinemas ou das aulas de uma escola (a normal, por exemplo). Hoje,
esse curso nem mesmo existe mais, e há tempos.
Bandos
de estudantes, que não tinham a menor preocupação com segurança, saíam tarde da
noite, por exemplo, dos colégios Cesário Mota, Ateneu Paulista, Bandeirantes ou
de outros que agora existem apenas na nossa memória. Foram derrubados para
virar praças ou espigões ou nem mesmo isso. Acabaram vencidos pela febre de
expansão urbana. Nesse tempo, não tão distante assim, velhinhos podiam caminhar
tranqüilos, com seus passinhos miúdos, despreocupados e sonhadores, antes do
jantar. Hoje, ninguém seria tolo de cometer tamanha temeridade. A própria vida
tinha outro compasso então, que era o do nosso coração.
Cito
minha experiência pessoal (que muitos não gostam quando o faço) porque, óbvio,
conheço a fundo (pudera!) mais do que ninguém aquilo que vivi. Muito mais,
logicamente, do que a ditada por mera observação. Há exatos 50 anos, em 1966,
eu cursava o terceiro e último ano do antigo curso científico – o atual segundo
grau, ou ensino médio – no Colégio Ateneu-Cesário Mota. Essas duas tradicionais
escolas campineiras haviam sido “fundidas”, no início do ano. Em 1965 ambas
estavam, ainda, separadas e eram ferrenhas concorrentes.
O
Cesário Mota foi desapropriado para o alargamento da Júlio de Mesquita. Concluí
o científico um tanto tarde, por uma série de problemas pessoais, que nada
tinham a ver com a vida escolar, mas que não vêm ao caso. E por que trago isso
à baila, neste espaço voltado à Literatura? Explico. Na época, eu residia na
Fazenda São Francisco, da Rhodia, empresa na qual trabalhava. Daí ter que
estudar à noite. Para voltar para casa, em 1965, tinha que atravessar, a pé, e
praticamente de madrugada, parte considerável da cidade. O Cesário Mota ficava
no Cambuí e o ônibus da empresa Bonavita para a Rhodia (que saía à meia-noite e
meia), tinha seu ponto nos arredores da estação ferroviária. No ano seguinte,
com a fusão do Ateneu com o Cesário Mota, o trajeto encurtou, mas não muito.
Nesses
dois inesquecíveis anos, jamais, em noite alguma, fui abordado por quem quer
que fosse, para absolutamente nada. Minha integridade física nunca esteve em
risco. Foram, inclusive, inúmeros os poemas que compus (mentalmente) nessas
estafantes caminhadas noturnas, passados posteriormente para o papel tão logo
chegava à estação da Bonavita. Fico imaginando o que poderia me acontecer hoje,
caso precisasse caminhar tanto e a horas tão impróprias. A cidade mudou. O
mundo mudou. Tudo hoje é diferente e ainda não concluí se as mudanças foram
para melhor ou não. Às vezes, penso que sim. Tenho, no entanto, sérias dúvidas
a respeito. Saudosismo a parte,
desconfio que a realidade atual seja muito pior. Pelo menos no que diz respeito
à segurança. As pessoas, a mentalidade e a realidade desta cidade que tanto amo
são outras. E, claro, eu também mudei bastante, embora não saiba se para melhor
ou para pior.
Érico
Veríssimo, no romance "Olhai os lírios do campo", afirma, através de
um dos seus personagens: "Há qualquer mistério nas ruazinhas desertas e
mal alumiadas, nas velhas casas coloniais de fachadas sombrias. Cachorros
latem. As portas iluminadas duma venda. O vulto da igreja antiga. Sempre uma
sugestão de Deus, dentro e fora de nossos pensamentos". Hoje, insisto,
tudo mudou! Não apenas em Campinas, mas em outras cidades onde a mudança foi
até mais dramática ainda. Transformaram-se, de lugares aprazíveis e tranqüilos,
em meros "depósitos de gente". Quem, por exemplo, se atreve, hoje em
dia, a passear pelas "ruazinhas desertas e mal alumiadas" dessa
gigantesca e cada vez mais violenta metrópole? Eu não me atrevo!
Em
nosso caso específico, pode haver de tudo, menos, como diz Érico Veríssimo,
"sempre uma sugestão de Deus, dentro e fora de nossos pensamentos",
se cometermos a temeridade de caminhar, mesmo que em plena luz do dia, por
lugares lôbregos, desertos e sombrios, como eu fazia, diariamente, sem receio
ou preocupação. Hoje, o sentimento que toma conta do incauto que se atreve a
embarcar nessa aventura é o de medo de ser assaltado ou de coisa pior. Convenhamos:
é uma lástima!
No
início do século XX havia, em todo o mundo, cerca de uma a duas dezenas de
concentrações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes. Hoje, elas já são mais
de cem, e continuam inchando. Algumas estão tão superdimensionadas a ponto de
terem populações superiores, inclusive, às de países inteiros. É o caso da
Cidade do México que, sozinha, tem mais habitantes do que o Peru e a Bolívia
somados!
Que
tipo de vida se pode ter num lugar assim, ruidoso, fumarento, inseguro e
violento? O ex-prefeito de Roma e historiador de arte, Giulio Carlo Argan,
disse, a esse propósito, numa entrevista: "Do meu ponto de vista, as
cidades deveriam ter um limite de expansão, também porque além daquele limite –
que eu diria entre 2 milhões e 3 milhões de habitantes – é muito difícil haver
governo democrático na cidade". Diríamos que as dificuldades são
extensivas a tantas outras coisas. Uma delas é a saudável convivência. Talvez a
população ideal seja ainda menor do que 3 milhões. Não diria 50 mil, como
defendia Platão, pois essa cifra poderia ser adequada para o seu tempo, mas não
aos dias atuais. Quem sabe o melhor seria que os centros urbanos não tivessem
mais do que 500 mil habitantes, por exemplo.
O
arquiteto Paulo Archias Mendes da Rocha, em seu livro "Memórias", faz
uma observação pertinente, que nós, campineiros, deveríamos levar muito a
sério: "A cidade é uma idéia, ela não existe. É uma invenção do homem. Se
não gostamos dela, temos de fazer uma outra. A esperança é essa. Saber que
sabemos fazer desta uma outra". Compete-nos, portanto, fazer uma
"outra" Campinas, que nos pertença de fato, e não aos violentos, aos bandidos,
aos marginais, aos ladrões, aos seqüestradores e a todos os malucos e
mal-intencionados que há por aí. Desta, a atual, mais violenta do que 25
capitais de Estado do País, certamente não gostamos! Eu, pelo menos, não gosto!
E nem poderíamos gostar, a menos que tivéssemos graves impulsos suicidas..
Como
seria bom podermos voltar a caminhar tranqüilos pelas ruas da nossa cidade, a
qualquer hora do dia ou da noite, como em passado ainda relativamente recente,
sem riscos de assaltos ou de atropelamentos! Ou pelo menos sem aborrecimentos.
Apreciar o céu, as nuvens, as árvores, os monumentos, os tipos humanos... Ter
oportunidade de valorizar o que de bom e agradável Campinas pode nos
proporcionar (ainda pode, mas não se sabe por quanto tempo mais). Encontrar
amigos, fazer novas amizades, empreender conquistas, valorizar o lado bom dos
nossos semelhantes. Fazer do lugar em que moramos o nosso mundo e não somente
fonte permanente de neuroses e preocupações.
Como
seria bom poder exclamar, como Paul Verlaine: "Que azul é o céu, quão
grande é a esperança!" Hoje, só podemos desabafar como o poeta Mário
Quintana: "Antes, todos os caminhos iam. Agora, todos os caminhos vêm. A
casa é acolhedora e os livros, poucos. E eu mesmo preparo o chá para os
fantasmas". É só o que nos resta fazer...Tomarmos chá com os fantasmas,
discretamente, e bem escondidinhos em nossas casas. E olhem lá!
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