Thursday, January 05, 2017

Ruas perdidas no tempo



Pedro J. Bondaczuk


As ruas da Campinas atual estão perdendo o encanto que um dia me despertaram. Continuo amando de paixão esta cidade, mas... Há tempos que esses caminhos que tantas vezes trilhei já não são mais um lugar seguro para mim e para os demais moradores e/ou transeuntes. Antes, quando a cidade era um burgo pacato e acolhedor, embora com inequívoca vocação para o progresso, era comum ver casais de namorados passeando tranqüilos, de mãos dadas, ao cair da tarde, à saída das matinês dos cinemas ou das aulas de uma escola (a normal, por exemplo). Hoje, esse curso nem mesmo existe mais, e há tempos.

Bandos de estudantes, que não tinham a menor preocupação com segurança, saíam tarde da noite, por exemplo, dos colégios Cesário Mota, Ateneu Paulista, Bandeirantes ou de outros que agora existem apenas na nossa memória. Foram derrubados para virar praças ou espigões ou nem mesmo isso. Acabaram vencidos pela febre de expansão urbana. Nesse tempo, não tão distante assim, velhinhos podiam caminhar tranqüilos, com seus passinhos miúdos, despreocupados e sonhadores, antes do jantar. Hoje, ninguém seria tolo de cometer tamanha temeridade. A própria vida tinha outro compasso então, que era o do nosso coração.

Cito minha experiência pessoal (que muitos não gostam quando o faço) porque, óbvio, conheço a fundo (pudera!) mais do que ninguém aquilo que vivi. Muito mais, logicamente, do que a ditada por mera observação. Há exatos 50 anos, em 1966, eu cursava o terceiro e último ano do antigo curso científico – o atual segundo grau, ou ensino médio – no Colégio Ateneu-Cesário Mota. Essas duas tradicionais escolas campineiras haviam sido “fundidas”, no início do ano. Em 1965 ambas estavam, ainda, separadas e eram ferrenhas concorrentes.

O Cesário Mota foi desapropriado para o alargamento da Júlio de Mesquita. Concluí o científico um tanto tarde, por uma série de problemas pessoais, que nada tinham a ver com a vida escolar, mas que não vêm ao caso. E por que trago isso à baila, neste espaço voltado à Literatura? Explico. Na época, eu residia na Fazenda São Francisco, da Rhodia, empresa na qual trabalhava. Daí ter que estudar à noite. Para voltar para casa, em 1965, tinha que atravessar, a pé, e praticamente de madrugada, parte considerável da cidade. O Cesário Mota ficava no Cambuí e o ônibus da empresa Bonavita para a Rhodia (que saía à meia-noite e meia), tinha seu ponto nos arredores da estação ferroviária. No ano seguinte, com a fusão do Ateneu com o Cesário Mota, o trajeto encurtou, mas não muito.

Nesses dois inesquecíveis anos, jamais, em noite alguma, fui abordado por quem quer que fosse, para absolutamente nada. Minha integridade física nunca esteve em risco. Foram, inclusive, inúmeros os poemas que compus (mentalmente) nessas estafantes caminhadas noturnas, passados posteriormente para o papel tão logo chegava à estação da Bonavita. Fico imaginando o que poderia me acontecer hoje, caso precisasse caminhar tanto e a horas tão impróprias. A cidade mudou. O mundo mudou. Tudo hoje é diferente e ainda não concluí se as mudanças foram para melhor ou não. Às vezes, penso que sim. Tenho, no entanto, sérias dúvidas a respeito.  Saudosismo a parte, desconfio que a realidade atual seja muito pior. Pelo menos no que diz respeito à segurança. As pessoas, a mentalidade e a realidade desta cidade que tanto amo são outras. E, claro, eu também mudei bastante, embora não saiba se para melhor ou para pior.         

Érico Veríssimo, no romance "Olhai os lírios do campo", afirma, através de um dos seus personagens: "Há qualquer mistério nas ruazinhas desertas e mal alumiadas, nas velhas casas coloniais de fachadas sombrias. Cachorros latem. As portas iluminadas duma venda. O vulto da igreja antiga. Sempre uma sugestão de Deus, dentro e fora de nossos pensamentos". Hoje, insisto, tudo mudou! Não apenas em Campinas, mas em outras cidades onde a mudança foi até mais dramática ainda. Transformaram-se, de lugares aprazíveis e tranqüilos, em meros "depósitos de gente". Quem, por exemplo, se atreve, hoje em dia, a passear pelas "ruazinhas desertas e mal alumiadas" dessa gigantesca e cada vez mais violenta metrópole? Eu não me atrevo!

Em nosso caso específico, pode haver de tudo, menos, como diz Érico Veríssimo, "sempre uma sugestão de Deus, dentro e fora de nossos pensamentos", se cometermos a temeridade de caminhar, mesmo que em plena luz do dia, por lugares lôbregos, desertos e sombrios, como eu fazia, diariamente, sem receio ou preocupação. Hoje, o sentimento que toma conta do incauto que se atreve a embarcar nessa aventura é o de medo de ser assaltado ou de coisa pior. Convenhamos: é uma lástima!

No início do século XX havia, em todo o mundo, cerca de uma a duas dezenas de concentrações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes. Hoje, elas já são mais de cem, e continuam inchando. Algumas estão tão superdimensionadas a ponto de terem populações superiores, inclusive, às de países inteiros. É o caso da Cidade do México que, sozinha, tem mais habitantes do que o Peru e a Bolívia somados!

Que tipo de vida se pode ter num lugar assim, ruidoso, fumarento, inseguro e violento? O ex-prefeito de Roma e historiador de arte, Giulio Carlo Argan, disse, a esse propósito, numa entrevista: "Do meu ponto de vista, as cidades deveriam ter um limite de expansão, também porque além daquele limite – que eu diria entre 2 milhões e 3 milhões de habitantes – é muito difícil haver governo democrático na cidade". Diríamos que as dificuldades são extensivas a tantas outras coisas. Uma delas é a saudável convivência. Talvez a população ideal seja ainda menor do que 3 milhões. Não diria 50 mil, como defendia Platão, pois essa cifra poderia ser adequada para o seu tempo, mas não aos dias atuais. Quem sabe o melhor seria que os centros urbanos não tivessem mais do que 500 mil habitantes, por exemplo.

O arquiteto Paulo Archias Mendes da Rocha, em seu livro "Memórias", faz uma observação pertinente, que nós, campineiros, deveríamos levar muito a sério: "A cidade é uma idéia, ela não existe. É uma invenção do homem. Se não gostamos dela, temos de fazer uma outra. A esperança é essa. Saber que sabemos fazer desta uma outra". Compete-nos, portanto, fazer uma "outra" Campinas, que nos pertença de fato, e não aos violentos, aos bandidos, aos marginais, aos ladrões, aos seqüestradores e a todos os malucos e mal-intencionados que há por aí. Desta, a atual, mais violenta do que 25 capitais de Estado do País, certamente não gostamos! Eu, pelo menos, não gosto! E nem poderíamos gostar, a menos que tivéssemos graves impulsos suicidas..

Como seria bom podermos voltar a caminhar tranqüilos pelas ruas da nossa cidade, a qualquer hora do dia ou da noite, como em passado ainda relativamente recente, sem riscos de assaltos ou de atropelamentos! Ou pelo menos sem aborrecimentos. Apreciar o céu, as nuvens, as árvores, os monumentos, os tipos humanos... Ter oportunidade de valorizar o que de bom e agradável Campinas pode nos proporcionar (ainda pode, mas não se sabe por quanto tempo mais). Encontrar amigos, fazer novas amizades, empreender conquistas, valorizar o lado bom dos nossos semelhantes. Fazer do lugar em que moramos o nosso mundo e não somente fonte permanente de neuroses e preocupações.

Como seria bom poder exclamar, como Paul Verlaine: "Que azul é o céu, quão grande é a esperança!" Hoje, só podemos desabafar como o poeta Mário Quintana: "Antes, todos os caminhos iam. Agora, todos os caminhos vêm. A casa é acolhedora e os livros, poucos. E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas". É só o que nos resta fazer...Tomarmos chá com os fantasmas, discretamente, e bem escondidinhos em nossas casas. E olhem lá!


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