Faces, não fases
Pedro
J. Bondaczuk
O artista, em especial
o poeta, desenvolve, com anos de exercício, a aptidão de explorar, sutilmente,
o subconsciente, à cata de emoções que lhe sirvam de matéria-prima para
maravilhosas obras de arte. Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas
pelos cinco sentidos, são transformados por esses criadores (que valorizam e
dão nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas, palavras que formam
metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos
transmitem suas emoções, às quais agregamos as nossas, ditadas por nossa
própria experiência pessoal.
Há quem entenda que o
poeta expresse, ou deva expressar, aspectos da sua vida pessoal em sua obra.
Nem sempre. Pode fazê-lo ou não. Não se trata de nenhuma regra arbitrária que deva,
necessariamente, ser seguida. Há, por exemplo, os que levam uma vida
estritamente virtuosa e exemplar e cujos versos são um permanente convite ao
pecado. Em contrapartida, existem os que são rematados pilantras (bandidos,
até), mas seus poemas são de uma pureza franciscana.
Um exemplo bastante
característico deste último caso é o de François Villon. Poucos homens foram
culpados de crimes mais torpes do que ele. Contudo, poucos, pouquíssimos,
raros, raríssimos poetas expressaram pensamentos mais puros. Quem lê seus
poemas, sem conhecer nada a seu respeito, vai pensar que se trate de algum
santo, que tenha sido canonizado pelo papa e seja passivo, portanto, de ser
adorado nos altares. Todavia, pelo menos nesse caso, nada está mais longe da
realidade.
Outra afirmação com a
qual não concordo é a de que um poeta tem muitas “fases” na vida e em cada uma
delas, sua poesia adquire determinada característica, estilo próprio, uma certa
forma, diferente das anteriores, de se expressar. Tolice. A pessoa é uma só. O
que pode, eventualmente, variar é a maneira de expressão (não raro, nem isso
sequer varia). Concordo, pois, plenamente com Ivan Junqueira quando afirma: “O
poeta não tem fases, mas faces”. E não se trata, estejam certos, de mero jogo
de palavras, de simples trocadilho.
A respeito dessa figura
lendária, com voz de anjo e atitudes de demônio, que foi François Villon, o
poeta Iosito Aguiar escreveu, na “Revista de Cultura” nº 4/4, de 20 de novembro
de 2000: “...Nasceu em 1431 e faleceu depois de 1463, embora não se saiba o ano
exato. Sua vida foi a mais estranha das simbioses. Era triste, mau, alegre,
louco, magro e desprezível; um feixe de pele, ossos e fogo. Anguloso, inquieto
e nervoso. ‘Seco e escuro como um cigano’, segundo ele próprio. O lábio superior
desfigurado por um golpe de adaga, olhos voltados em furtiva obliqüidade e para
o salto súbito de um possível gendarme escondido na sombra. Era o mais hábil e
vil ladrão de Paris e o maior poeta da França a seu tempo”.
“Estranho paradoxo!”,
deve estar pensando o leitor. Seu nome verdadeiro era François de Montcorbier.
Conheceu, desde o berço, a extrema miséria. Foi criado, conforme Iosito
enfatiza, à base de “folhas de nabos e maldições”, como ocorre, hoje, com
milhões de crianças no Brasil e pelo mundo afora. A fome foi a sua mais
constante companheira e lhe despertou o instinto de sobrevivência, mas pelo
lado puramente animal, nem um pouco racional. Para combatê-la, por exemplo,
aprendeu a roubar, inicialmente os armazéns nas vizinhanças de onde morava e,
posteriormente, tudo e todos que visse pela frente. Sua educação para a vida,
portanto, começou pelas técnicas do furto. Péssimo começo, não é mesmo?!
Para complicar, perdeu
o pai cedo. A mãe, impotente para criá-lo e, sobretudo, para educá-lo, não viu
outro recurso senão entregar o menino, então com 12 anos, à tutela de um
parente distante, o padre Guilhaume de Villon. Este vislumbrou, naquele garoto
esquálido e esquivo, enorme potencial, aguda inteligência e inata vocação para
a vida religiosa. Quanta ingenuidade! Afeiçoou-se tanto ao menino, a ponto de
lhe dar o próprio nome. Percebeu, no entanto, muito cedo, que o pequeno
François, embora dotado de ágil raciocínio, era absolutamente avesso a qualquer
tipo de autoridade. Ainda assim, achou que o garoto daria um bom sacerdote e
apostou nessa possibilidade.
Em 1443, matriculou-o
na Universidade de Paris. Inteligente como era, o jovem se deu bem no meio
universitário. Conseguiu, inicialmente, o título de bacharel e, posteriormente,
o de professor. Saiu da instituição com a fama de excelente aluno, de
inspiradíssimo poeta, mas... de mestre nas artes da malandragem. Passou a levar
vida dupla e totalmente desregrada. Durante as tardes, compunha poemas
belíssimos, de extrema sensibilidade. Nas noites, porém, dedicava-se à
devassidão e roubos. E as manhãs, claro, reservava para dormir (afinal, ninguém
é de ferro).
Iosito escreve a
respeito desse período da vida do poeta: “Aos 20 anos, François Villon já havia
seduzido muitas mulheres; aos 24, assassinado um padre, aos 25, tornara-se um
dos principais membros da Conqueville (Cavalheiros do Punhal), malta demoníaca
de trapaceiros, gatunos, bandoleiros, arrombadores, batedores de carteiras,
salteadores de estradas, assassinos, rufiões que fizeram do século XV uma época
de terror”. E suas poesias? Mudaram de temática e se tornaram debochadas,
imorais e maldosas, como ele havia se tornado? Muito pelo contrário! Eram cada
vez mais puras e mais sensíveis.
Um dos poemas mais
belos e marcantes que François Villon nos legou é este, intitulado “Balada das
coisas sem importância”, que peço licença ao paciente leitor para reproduzir:
“Conheço
se há moscas no leite,
Conheço
pela roupa o homem,
Conheço
e tédio e o deleite,
Conheço
a fartura e a fome,
Conheço
a mulher pelo enfeite,
Conheço
o princípio e o fim,
Conheço
pela chama o azeite,
Conheço
tudo, menos a mim.
Conheço
o gibão pela gola,
Conheço
o rico pelo anel,
Conheço
o fiel pela sacola,
Conheço
a monja pelo véu,
Conheço
o porco pela tripa,
Conheço
o irmão pelo latim,
Conheço
o vinho pela pipa,
Conheço
tudo, menos a mim.
Conheço
a mula e o cavalo,
Conheço
o carro e a carreta,
Conheço
a galinha e o galo,
Conheço
o sino e a sineta,
Conheço
a flor pelo talo
Conheço
Abel e Caim,
Conheço
o pote e o gargalo,
Conheço
tudo, menos a mim.
Príncipe,
conheço tudo em suma,
Conheço
o branco e o carmim
E
a morte que o fim consuma,
Conheço
tudo, menos a mim”.
Não se sabe,
exatamente, em que circunstâncias esse devasso, rufião, bandoleiro e assassino
morreu. Uns dizem que foi executado em uma prisão. Outros, afirmam que
conseguiu fugir do cárcere e terminou seus dias à míngua, abandonado e só numa
caverna, vítima da fome, que o transformou no monstro que foi. Quase tudo a seu
respeito transformou-se em lenda que, a cada narrativa, acrescenta ou tira
detalhes.
Seu epitáfio, bastante
revelador, contudo, sobreviveu ao tempo e diz bem o que François Villon foi:
“Este bastardo inútil e desmiolado devolveu o seu corpo à terra, nossa mãe
comum. Os vermes não encontrarão muito o que comer nele, pois a fome já o roeu
até quase os ossos...Não conheceu o descanso até que a morte chegou e deu-lhe
um pontapé para fora do mundo. Deus misericordioso, tende piedade da sua alma e
concedei-lhe paz eterna”.
Pelo exposto, concluo
que o poeta mexicano, Octávio Paz, está coberto de razão quando afirma: “Os
poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Ou seja, têm que ser
avaliados pelo que escreveram e só. E o que viveram? Bem, isso importa apenas a
eles e aos seus descendentes (caso hajam deixado algum, é claro)!
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