Recriação da vida
Pedro J. Bondaczuk
Esta sexta-feira chuvosa e inusitadamente fria para
o verão, dia do meu aniversário, passei lendo poesia. Mais especificamente, os
livros de Carlos Drummond de Andrade. Não se tratou de nenhuma pesquisa para
novo trabalho e nem de preparação para fazer alguma preleção. Não havia
qualquer obrigatoriedade. Foi por puro prazer.
Dediquei o dia para saborear palavras bem
selecionadas e habilmente manejadas, como se saboreia um delicioso banquete. A
casa estava silenciosa, sem visitas e sem a presença dos filhos, cada um à cata
do seu lazer preferido. Estavam, todos, com certeza, preparando-me uma festa de
surpresa (embora não soubessem que não me surpreenderiam, pois desconfiava
disso). Contava, como se vê, com toda a disponibilidade de tempo, para ser
preenchido com o que melhor me aprouvesse. E foi o que me aprouve. Ou seja, ler
poesia.
Além de ser poeta (possivelmente medíocre), gosto de
ler bons poemas alheios. Em parte como uma espécie de exercício jornalístico. O
saudoso jornalista Cláudio Abramo recomendava aos editores, para adquirir o
necessário domínio vocabular e o senso de precisão exigidos em uma edição, que
tivessem essa espécie de leitura. Que lessem versos, principalmente para
desenvolver o ritmo. A princípio pensei que se tratasse de brincadeira do
mestre. Mas fiz a experiência. E, como sempre, ele tinha razão. Mas não é só
isso.
Leio os grandes poetas, sobretudo, por prazer.
Especialmente quando se trata de Carlos Drummond de Andrade, de quem tenho
todos os livros que publicou, além de vastíssima coleção de crônicas de quando
escrevia para o "Jornal da Tarde" e outros jornais, de outras partes
do País, cujos textos publicados me foram gentilmente enviados por amigos. Pude
fazer, portanto, essa jornada sentimental, esquadrinhando minhas emoções mais
íntimas.
Há um jeito muito especial de ler poesia. É um
processo de recriação. A cada nova leitura, encontramos significados diferentes
nos versos. Descobrimos novas nuances, que antes não havíamos vislumbrado.
Saboreamos cada metáfora, como se fosse um delicioso e novo quitute. E quem
disse que não são? Nunca o significado é o mesmo. É como se lêssemos um poema
diferente, embora seja o mesmo lido às vezes dezenas de vezes.
Pablo Neruda, em "A Palavra", constata em
certo trecho:
"...Vocábulos
amados.
Brilham como
pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho.
Persigo
algumas palavras.
São tão belas
que quero colocá-las todas em meu poema.
Agarro-as no
vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante
do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como
frutas, como algas, como gatas, como azeitonas.
E então as
revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as.
Deixo-as como
estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como
restos de naufrágio, presentes da onda.
Tudo está na
palavra..."
É verdade. Nas mãos de artesãos hábeis, esta frágil
matéria-prima, que aparentemente dá tão poucos recursos ao artista, permite a construção
de mundos nos quais gostaríamos de aportar e viver para sempre, longe da fria e
feia realidade do cotidiano.
Veja o leitor como o poeta enxerga o aparentemente
trivial, nestes versos de Drummond, do poema "Família":
"Três
meninos e duas meninas,
sendo uma
ainda de colo.
A cozinheira
preta, a copeira mulata,
o papagaio, o
gato, o cachorro,
as galinhas
gordas no palmo de horta
e a mulher que
trata de tudo.
A
espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o
trabalho, a reza,
a goiabada na
sobremesa de domingo,
o palito nos
dentes contentes,
o gramofone
rouco toda a noite
e a mulher que
trata de tudo.
O agiota, o
leiteiro, o turco,
o médico uma
vez por mês,
o bilhete
todas as semanas
branco! mas a
esperança sempre verde.
A mulher que
trata de tudo
e a
felicidade".
Pois é, Drummond pintou nada mais que o retrato da
vida de cada um de nós, com uma diferença aqui, outra ali, mas que é
basicamente assim. Essa mesma que nos abate o corpo e angustia o espírito.
Essa, eivada de problemas, cujas dimensões costumamos ampliar. Essa, repleta de
frustrações, que não resistem à mais simples das análises.
Falta-nos, no cotidiano, a visão do poeta. Carecemos
do filtro da arte, que de acordo com o compositor Claude Debussy, "é a
mais bela das mentiras", mas que nos permite enxergar que a felicidade que
procuramos alhures, está onde sempre esteve: ali, conosco, debaixo do nosso
nariz, sem que sejamos capazes de a ver.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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