Saturday, January 21, 2017

Recriação da vida



Pedro J. Bondaczuk


Esta sexta-feira chuvosa e inusitadamente fria para o verão, dia do meu aniversário, passei lendo poesia. Mais especificamente, os livros de Carlos Drummond de Andrade. Não se tratou de nenhuma pesquisa para novo trabalho e nem de preparação para fazer alguma preleção. Não havia qualquer obrigatoriedade. Foi por puro prazer.

Dediquei o dia para saborear palavras bem selecionadas e habilmente manejadas, como se saboreia um delicioso banquete. A casa estava silenciosa, sem visitas e sem a presença dos filhos, cada um à cata do seu lazer preferido. Estavam, todos, com certeza, preparando-me uma festa de surpresa (embora não soubessem que não me surpreenderiam, pois desconfiava disso). Contava, como se vê, com toda a disponibilidade de tempo, para ser preenchido com o que melhor me aprouvesse. E foi o que me aprouve. Ou seja, ler poesia.

Além de ser poeta (possivelmente medíocre), gosto de ler bons poemas alheios. Em parte como uma espécie de exercício jornalístico. O saudoso jornalista Cláudio Abramo recomendava aos editores, para adquirir o necessário domínio vocabular e o senso de precisão exigidos em uma edição, que tivessem essa espécie de leitura. Que lessem versos, principalmente para desenvolver o ritmo. A princípio pensei que se tratasse de brincadeira do mestre. Mas fiz a experiência. E, como sempre, ele tinha razão. Mas não é só isso.

Leio os grandes poetas, sobretudo, por prazer. Especialmente quando se trata de Carlos Drummond de Andrade, de quem tenho todos os livros que publicou, além de vastíssima coleção de crônicas de quando escrevia para o "Jornal da Tarde" e outros jornais, de outras partes do País, cujos textos publicados me foram gentilmente enviados por amigos. Pude fazer, portanto, essa jornada sentimental, esquadrinhando minhas emoções mais íntimas.

Há um jeito muito especial de ler poesia. É um processo de recriação. A cada nova leitura, encontramos significados diferentes nos versos. Descobrimos novas nuances, que antes não havíamos vislumbrado. Saboreamos cada metáfora, como se fosse um delicioso e novo quitute. E quem disse que não são? Nunca o significado é o mesmo. É como se lêssemos um poema diferente, embora seja o mesmo lido às vezes dezenas de vezes.

Pablo Neruda, em "A Palavra", constata em certo trecho:

"...Vocábulos amados.
Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho.
Persigo algumas palavras.
São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema.
Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como  gatas, como azeitonas.
E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as.
Deixo-as como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda.
Tudo está na palavra..."

É verdade. Nas mãos de artesãos hábeis, esta frágil matéria-prima, que aparentemente dá tão poucos recursos ao artista, permite a construção de mundos nos quais gostaríamos de aportar e viver para sempre, longe da fria e feia realidade do cotidiano.

Veja o leitor como o poeta enxerga o aparentemente trivial, nestes versos de Drummond, do poema "Família":

"Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade".

Pois é, Drummond pintou nada mais que o retrato da vida de cada um de nós, com uma diferença aqui, outra ali, mas que é basicamente assim. Essa mesma que nos abate o corpo e angustia o espírito. Essa, eivada de problemas, cujas dimensões costumamos ampliar. Essa, repleta de frustrações, que não resistem à mais simples das análises.

Falta-nos, no cotidiano, a visão do poeta. Carecemos do filtro da arte, que de acordo com o compositor Claude Debussy, "é a mais bela das mentiras", mas que nos permite enxergar que a felicidade que procuramos alhures, está onde sempre esteve: ali, conosco, debaixo do nosso nariz, sem que sejamos capazes de a ver.

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