Pão nosso de cada hora
Pedro J. Bondaczuk
“O homem vive de ilusão”. Essa
afirmação categórica e peremptória é do escritor português, Antero de
Figueiredo, que nasceu em Coimbra, em 28 de novembro de 1866 e morreu na cidade
do Porto, em 10 de abril de 1953. Certamente, muitos contestam-na,
contestaram-na e a irão contestar tempos afora, dizendo que tal declaração é
uma generalização sem fundamento e que boa parte das pessoas, se não a maioria,
encara a vida com os pés bem fincados no solo da realidade. Será?
Gosto, particularmente, desse
escritor, não apenas pela profundidade do que escreveu, do seu estilo e da
elegância com que maneja seu instrumento de trabalho (a palavra), mas porque
sua trajetória de vida guarda algumas semelhanças com a minha. Como ele, por
exemplo, também pretendi seguir a Medicina. Ele, na tradicional Universidade de
Coimbra, eu... em Botucatu, aqui no Brasil.
Antero desistiu do curso e
enveredou para as Letras. Formou-se na Universidade de Lisboa. Eu... abri mão
do meu sonho para encarar o Jornalismo. Nossa identidade de trajetória de vida,
porém, pára por aí. O escritor português desenvolveu brilhante carreira na
Literatura Portuguesa e tornou-se um marco, nos séculos XIX e XX. Eu... tento
abrir caminho na Brasileira neste confuso e dramático século XXI.
E o que vem a ser a tal da
ilusão, sobre a qual tantos falam e escrevem e poucos se dão conta do que, de
fato, se trata? A palavra deriva do latim “ilusione”. Os dicionários
classificam-na da seguinte forma: “Substantivo feminino – engano dos sentidos
ou da inteligência; interpretação errada de um fato; pensamento quimérico;
coisa efêmera; utopia; fantasia; efeito artístico que produz ou procura
produzir a impressão de realidade”.
Quem pode afirmar, com absoluta
honestidade – e não apenas dizer, mas provar –, que nunca passou por nenhuma
dessas situações? Todos já passamos e não apenas uma só vez, mas inúmeras, em
vários dias, semanas, meses, anos, pela vida afora. Antero de Figueiredo vai
mais longe. Afirma que a ilusão é o “pão nosso de cada hora”. E eu diria mais:
“de cada segundo da nossa trajetória pelo mundo”.
Quem nunca foi enganado pelos
sentidos? Quem nunca interpretou de uma determinada forma o que viu, quando na
verdade era muito diferente do visto? Isso acontece com incrível freqüência, a
todo o momento, e raramente nos damos conta. O mesmo equívoco ocorre com as
“interpretações” da audição, do paladar, do tato e do olfato. E a inteligência,
nunca se engana? Interpreta corretamente o que nos cerca ou de que tomamos, de
alguma forma, conhecimento? Percebe, com absoluta lucidez (e nitidez), sem a
menor possibilidade de enganos, as motivações e conseqüências dos fatos?
Raramente! Diria, praticamente nunca. Vive a cometer equívocos, gerando,
portanto, ilusões.
E quem nunca teve algum
pensamento quimérico? Quem nunca desejou e sonhou com algo que não existe, não,
pelo menos, daquela forma exata que almeja? Quanto à efemeridade... Tudo é
efêmero, transitório e passageiro. Principalmente cada um de nós. O que são
setenta, oitenta, noventa ou mesmo cem anos de vida nossos diante da
eternidade? Virtualmente, nada! Somos todos, cada um de nós, ilusões
ambulantes.
Quanto à utopia, quem não aspira
por um mundo ideal, de solidariedade, justiça, amor e paz? Por mais egoísta que
uma pessoa seja, por mais maldosa e destrutiva que se mostre, não há quem nunca
tenha tido essa aspiração algum dia, mesmo que à sua maneira. No entanto...
isso também é ilusão.
A fantasia, por seu turno, é a
marca registrada do único animal conhecido da natureza dotado de inteligência,
ou seja, da capacidade de entender o que é, onde está e tudo o que o cerca. Mas
entende literalmente, exatamente como é? Claro que não! O que são os símbolos,
como a linguagem falada e escrita, os números, a matemática, as ciências e a filosofia,
se não fantasias? O que eles têm de concreto, de palpável, de real? Nada, não é
mesmo? Tudo isso é um conjunto de ilusões, admitam ou não os pseudo-realistas
(na verdade, ou imensos equivocados ou tremendos mentirosos).
Restam-nos, na relação de significados
dessa palavra tão citada e pouco compreendida, as artes. O que há de real nas
concepções e, sobretudo, nas realizações das obras artísticas? É verdade que os
artistas se esmeram em simular a realidade (ou o que entendem como tal), dando
às suas produções a maior verossimilhança possível. O que são, no entanto,
pinturas, esculturas, músicas, coreografias, encenações teatrais, poesias,
contos, romances etc. se não maravilhosas e marcantes ilusões?
Antero de Figueiredo explica essa
nossa necessidade de nos iludirmos: “As almas sobem como o fumo; a busca do
ideal é a fuga dos desgostos da vida real, quando menos bem-compreendida; é um
instinto de defesa, que solicita o homem a robustecer-se com nobres
visualidades; é, enfim, o progresso espiritual e moral da consciência”.
Após toda essa explanação que
fiz, emergem, automaticamente, estas questões: é possível vivermos sem ilusões?
É desejável? Há alguém, uma só pessoa que seja,.das quase 7 bilhões que habitam
o mundo atualmente e das tantas e tantas que já viveram desde o surgimento do
homem sobre a Terra, que seja ou tenha sido completa, total, irrestrita e
absolutamente realista? Não, não e não!
Claro que, como em toda e
qualquer coisa, aqui também os excessos são condenáveis. Não temos que nos envergonhar,
contudo, por nos alimentarmos, a cada dia, a cada hora, a cada reles segundo,
de ilusões. Porquanto, como constatou Antero de Figueiredo, ela é “fecunda”. É
a matéria-prima das artes, das ciências e da filosofia. É o próprio caráter do
homem. Sofismas a parte, é a única realidade possível. É, sem tirar e nem pôr,
“o pão nosso de cada hora”.
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