Força estranha
Pedro J. Bondaczuk
O
dia era 7 de novembro de 1995. Havia amanhecido magnífico, num misto de verão e
de primavera. O céu era, como se diz, "de brigadeiro", completamente
azul, sem uma única nuvem. O sol dourava tudo, o casario, as praças, as
crianças brincando, os carros que refletiam sua luz, destacando o chafariz
de águas cristalinas em frente. Alimentado, banhado, barbeado e vestido
para trabalhar, saí a passear no jardinzinho de casa – uma ilha, um cubículo
cheio de terra, de quatro metros quadrados, com um pinheiro no centro, algumas
roseiras e várias flores silvestres, amarelas, azuis, vermelhas, brancas e
lilases nas laterais, cercado de cimentados por todos os lados – à espera da
condução que me levaria para o jornal em que trabalhava.
Absorto
em minhas preocupações mesquinhas (que naquele momento achava importantíssimas,
como se a vida consistisse apenas de contas a pagar e a receber, do desempenho
dos filhos na escola, de notícias a editar sobre carros-bombas, negociações de
paz, dívida externa, miséria etc.), mal enxergava o que se passava ao meu
redor. E mal ouvia também. Um bem-te-vi persistente insistia em repetir seu
coro, a pequenos intervalos, e me chamava a atenção. Abelhas zumbiam ao meu
redor, em sua faina diária em busca do pólen. Um caminhão de entrega de gás
passava ao longe, com sua musiquinha clássica, cujo compositor a maioria
desconhece. Era um dia comum, comuníssimo, rotineiro, desses que passam
despercebidos e dos quais nos esquecemos por completo quando terminam, por não
serem "decisivos". Dos que não trazem nenhuma desgraça e nem a
suprema felicidade (ou o que entendemos como tal).
Apesar
do sol, de estar quente para aquela hora do dia, uma brisa cortava o ar e
despenteava meus cabelos. Um aroma delicioso de terra e de flores como que me
embriagava. Subitamente, sem atentar para o que fazia, pus-me a cantar, com meu
vozeirão desafinado, tormento para ouvidos alheios, uma canção que, se não me
falha a memória, foi composta por Caetano Veloso para Roberto Carlos.
"Por isso uma força
me leva a cantar
por isso esta força estranha no
ar...",
Era
o que eu trauteava distraído, tendo no ouvido, soando como se fosse real, uma
grande orquestra de cordas e metais. E soava, também, a voz morna e romântica,
claro, de um dos meus cantores preferidos interpretando a composição de um dos
meus compositores prediletos em fundo. Via, volteando ao meu redor, enorme
borboleta, multicolorida, de um tamanho que não me lembro de ter visto alguma
vez igual a ela, com as dimensões exatas de minha mão aberta.
Suas
asas mesclavam as cores negra, azul, laranja e um esverdeado cambiante, como um
arco-íris. Volteava para cá, volteava para lá... Pousou em uma roseira, tornou
a voar, voltou a pousar, retomou o vôo, isso por alguns minutos. Quantos? Não
saberia precisar. O cenário levava-me a perder toda a noção de tempo. Eu, que
havia levantado indisposto, com dor de cabeça, provavelmente estressado em
virtude dos excessos de trabalho e de preocupação, da má alimentação e de um
ciclo inadequado de sono, me senti revigorado. Experimentei a mesma disposição
que tinha aos dezessete anos, quando achava que o mundo existia somente para
que eu o conquistasse. Bem diz a sabedoria oriental que "um coração alegre
faz tanto bem quanto os remédios".
Segui
para o jornal com uma resolução tomada: “vou perpetuar este dia em uma crônica.
É inconcebível que esta poesia explícita, natural, espontânea, viva, fique
sepultada no esquecimento, como se nunca tivesse existido, apenas pela ausência
de algum acontecimento marcante, positivo ou negativo”. Ao chegar à redação,
porém, comecei a vacilar. "Será que não irão me considerar tolo? Escrever
sobre esse tipo de assunto banal não seria pieguice? Não estarei correndo o
risco do ridículo que tanto temo?".
Lembrei-me
de uma afirmação do poeta Affonso Romano de Sant'Anna de que "é da
banalidade que as coisas extraordinárias se alimentam". E, afinal, o que é
importante? Ganhar dinheiro para gastar? Conquistar fama para ser esquecido?
Lutar por um poder que nada pode? Ainda assim mantinha-me relutante. Finalmente,
por amar os que me cercavam e até os desconhecidos (gosto, sobretudo, de
pessoas), decidi perpetrar exatamente estas linhas (que resgato do meu arquivo,
tantos anos depois). Afinal, como escreveu o cronista Oscar D'Ambrósio, "a
crônica é um ato de amor, pois amar é transformar o cotidiano no
inesquecível"... Só por isso, jamais esquecerei aquele dia.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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