Política leva
parisienses a ignorarem epidemia
Pedro
J. Bondaczuk
A ocorrência de
qualquer epidemia (e não importa de que doença) tumultua a vida das cidades em
que ocorrem, alterando por completo sua rotina de vida e, não raro, causando
pânico entre a população. Isso, certamente, soa ao leitor como o óbvio do
óbvio. E refiro-me, aqui, ao nosso tempo, ao século XXI, com todos os recursos
disponíveis em toda e qualquer área de atividade que se imagine. Mesmo as
localidades de países paupérrimos – da África, da Ásia e de algumas regiões da
América Latina – dispõem, hoje em dia, de maiores facilidades de atendimento do
que dispunham enormes cidades do século XIX, notadamente da Europa. Recorde-se
que naquele tempo a Medicina ainda era incipiente, empírica, na base da
“tentativa e erro”. Destaque-se, por conseguinte, que sequer eram conhecidos
vírus e bactérias, os causadores das epidemias. Por isso, ninguém cogitava (e
nem poderia) na existência de vacinas e nem da adoção de tantas outras medidas
preventivas, hoje primárias e corriqueiras, mas que então eram desconhecidas.
Dessa forma, as
manifestações epidêmicas de doenças como a peste, o cólera, a varíola, a febre
amarela e tantas outras, em determinada cidade, no mínimo alteravam dramática e
violentamente seu ritmo normal. Não raro, causavam pânico entre a população (e
entre as autoridades), provocando o êxodo de quem tinha como e para onde fugir
e, quase sempre, instalavam a desordem e o caos por ali. E o que aconteceria,
por exemplo, em Paris, que já na primeira metade do século XIX era das mais
populosas e principais metrópoles do mundo? Diz a lógica que tudo o que citei.
Ou seja, o medo, o pânico, o êxodo, as baderna e até o caos. Mesmo que não
ocorresse nada disso, jamais a cidade teria a mais remota aparência de
normalidade. Certo? Errado! Pelo menos no que se refere à epidemia de cólera de
1830.
Curiosamente, essa
ocorrência conta com poucos testemunhos literários. E não foi pelo fato da
doença ser mais branda do que em outros tempos e outros lugares e por atingir
poucas pessoas. Muito pelo contrário, o cólera matou, em apenas seis meses
naquela ocasião, 19 mil parisienses!!! Foi, como se vê, uma carnificina. Os
dois principais (e escassíssimos) documentos dessa época são de um historiador
francês (que anda esquecido em nosso tempo) e de um famoso escritor alemão. O
primeiro foi Anais de Raucou (que mudou seu nome para Anais Bazin, adotando o
sobrenome do milionário que o adotou, com o qual assinou todos os livros que
publicou). Já a celebridade germânica que tratou da epidemia de cólera em Paris
foi Heinrich Heine. É certo que seu relato é menos minucioso, pois sua
preocupação era a situação política enfrentada pela França na ocasião, que
talvez eu venha a abordar algum dia, posto que em outro contexto.
Anais Bazin fez seu
relato no livro “A época sem nome”. Consiste de detalhadas e minuciosas
crônicas parisienses, retratando a Paris daqueles turbulentos dias de 1830, de
tamanha agitação política a ponto da população sequer atentar para a epidemia
que dizimava, de maneira feroz e implacável, vidas e mais vidas de seus
moradores. Informo que esse foi o período do início do que passou para a
história da França como a “Monarquia de julho”, inclusive com episódios
sangrentos em combates de rua e deposição de um rei e a dramática ascensão de
outro. Tratarei, porém, disso, em outra ocasião. Bazin dedicou um capítulo
inteiro do seu livro ao cólera. Trata-se, pode-se assim classificar, de uma
reportagem completa, perfeita, com começo, meio e fim, em que o autor traça
todo o histórico da epidemia (afinal, era um historiador).
Com extrema precisão,
ele descreve como o cólera chegou a Paris. Relata, ainda, quais foram as
precauções recomendadas pelas autoridades sanitárias aos cidadãos. Aborda as
diversas reações (poucas) da sociedade local face á doença. Não deixa de
destacar, também, a valentia dos médicos e a abnegação dos sacerdotes no
atendimento aos doentes e aos milhares de moribundos. Como bom repórter, que
mostrou ser, não se esquece de apresentar um balanço final de mortos. E conclui
esse capítulo do seu citado livro com o súbito fim da epidemia. Mas o que chama
mais a atenção, e que me deixou estupefato, foi a sensação que o historiador
teve ao andar pelas ruas de Paris. A de que a cidade não mudou em nada a sua
rotina habitual, como se não houvesse nenhuma epidemia, que ceifava milhares e
milhares de vidas. Reforça a sua impressão o fato de que praticamente ninguém
escreveu sobre esse flagelo do ano de 1830.
Bazin observa o
seguinte, em determinado trecho do capítulo sobre o cólera em seu livro: “(...)
Apesar de todos estes tristes pensamentos, estes relatos desoladores, estes
encontros funestos, nada foi suspenso no movimento dos negócios. A cada manhã,
as pessoas se preocupavam com os afazeres do dia e com nada mais. Os
comerciantes abriam seus estabelecimentos, os restauradores mantinham seus
fornos acesos, os cafés só acrescentavam a tília e a menta a suas infusões
habituais, sem, todavia, nenhuma quebra de rotina. As carruagens circulavam, os
burgueses exerciam sua vigilância de costume, os jornais enchiam-se de
discussões e de notícias. A Justiça seguia seu curso. O tribunal dava seu
veredito sobre as conspirações e ofensas. A Bolsa tinha suas subidas e descidas
e a política suas esperanças e suas desilusões (...)”.
E ele segue, mais
adiante, em suas descrições: “(...) O motim havia diminuído um pouco, nos
primeiros dias da epidemia, como que para acolhê-la. Paris, no entanto, parecia
haver perdido um único dos seus costumes: o dos casamentos. Ninguém estava tão
seguro da própria vida para uni-la à de outra pessoa. Em resumo, todas as
indústrias funcionavam, como se fosse para não se desacostumar de produzir.
Inclusive, creio, sem poder comprovar, que uma nova novela foi publicada na
ocasião, por uma editora e enviada às livrarias”. Confesso não conhecer nenhum
outro caso em que os habitantes de alguma grande metrópole tenham tratado, com
tamanha indiferença, alguma epidemia, como a população de Paris tratou a do
cólera, em 1830, mais preocupada com os azares e vaivéns da política do que com
o risco de encarar uma morte certa, caso contraísse a doença. É ou não é
espantoso?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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