Friday, July 29, 2016

O apartheid social



Pedro J. Bondaczuk


O problema dos chamados "homeless", ou seja, das pessoas que não têm onde morar e dormem nas ruas, se agravou muito e raramente se fala dele. O jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de sexta-feira (3 de junho de 1994), traz a história de um francês, que veio para o Brasil em 1950, e que vive nessa vexatória situação.

Nesse caso, trata-se de um alcoólatra, que perdeu a motivação e a alegria de viver depois que teve seu casamento desmanchado. Como ele, há centenas, milhares de indivíduos em São Paulo e em outras metrópoles do País que, por uma razão ou outra, perderam os bens, a família e, o que é pior, o auto-respeito.

Entre os que estão cadastrados para o pouso em abrigos do Estado, há pessoas desempregadas há dois, três, cinco e até oito anos. São as vítimas de um modelo de "desenvolvimento" cínico, perverso, que usa uma pseudo crise que se eterniza como álibi para aumentar a defasagem na distribuição de renda em seu próprio proveito. E relatório das Nações Unidas, divulgado esta semana, acentua que o Brasil, neste aspecto, é o segundo colocado no mundo, perdendo a "primazia" para Botswana.

Essa legião de desesperados, que perdeu tudo, a partir da dignidade que lhe foi surrupiada, é vítima dos planos econômicos sucessivos que não deram certo, porque foram elaborados para não funcionar, sem competência, sem sinceridade, sem vontade política de debelar a inflação, que apenas penaliza o assalariado e o cidadão mais desprotegido.

E o contingente de "homeless" está longe de diminuir. Pelo contrário, cresce a cada nova aventura empreendida pelos políticos oportunistas e pelos frios tecnocratas, que transformaram o País num laboratório para suas delirantes experiências.

Homens, mulheres e crianças têm seu presente arruinado, seus futuros decididos nos gabinetes luxuosos de Brasília. São forçados a se submeter à amarga experiência diária da rejeição, da frustração e do abandono sem esperanças.

São brasileiros vítimas de um "apartheid" mais desumano e brutal do que aquele que imperou na África do Sul, de 1948 até a eleição de Nelson Mandela para a presidência, que é a segregação social. Quem será o redentor desses humilhados e ofendidos? Quem lhes devolverá a perspectiva da utilidade, da dignidade, do auto-respeito? Quem permitirá que eles exerçam um direito que deveria ser inalienável, e que no entanto lhe é negado: o da cidadania?


(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 6 de junho de 1994).

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