Wednesday, July 27, 2016

Ficção fundamentada na mais estrita realidade

Pedro J. Bondaczuk

Os mistérios de Marselha” é considerado, por boa parte da crítica especializada, como um “livro menor” na monumental obra de Emile Zola. Entendo que é preciso muito cuidado nesse tipo de avaliação. Se a comparação for feita com tudo o que o escritor produziu na sequência, isso faz até certo sentido. Neste caso, estaremos comparando ele com ele mesmo. Porém se compararmos esse livro com obras similares de outros autores, essa classificação é não somente injusta, como denota falta de critério de quem o compara. Li o romance (na edição espanhola, pois não encontrei em lugar algum uma edição em português, que desconfio que nem haja) e fiquei empolgado com ele. Portanto, em qualidade literária, ele não fica nada a dever a nenhum outro.

“Os mistérios de Marselha” foi publicado em 1867, quando Zola tinha 27 anos de idade. Não foi seu primeiro livro. Foi o quinto. Antes dele, o escritor já havia publicado: “Contes à Ninon” (1864), “La confession de Claude” (1865), “Madeleine Férat” (1868) e “Le vœu d'une morte” (1866). Nessa obra, ignorada por tantos que criticam o que sequer conhecem, observe-se, já aparecem todas as virtudes, todas as características que viriam a pautar a carreira literária do “pai do Naturalismo”, sobretudo seu rigor histórico, embora escrevendo ficção. A História se faz presente no citado romance (que muita gente classifica como novela) em duas ocasiões. A primeira é quando Zola se refere à Revolução de 1848. A segunda, ao tratar especificamente da epidemia do cólera que assolou Marselha no ano seguinte, 1849.

Impressiona, reitero, o rigor histórico do escritor, já que ele não testemunhou nenhum dos dois eventos (e nem poderia). Quando da ocorrência do primeiro, por exemplo, Zola tinha apenas oito anos de idade (nasceu em 2 de abril de 1840) e quando aconteceu o segundo, óbvio, tinha um ano a mais. Ademais, não morava em Marselha, mas em Paris. Teve, pois, o cuidado de pesquisar meticulosamente, para que nenhum dado fosse diferente do que realmente aconteceu. Essa se tornou, aliás, característica marcante de seu tão apreciado estilo. O escritor trata da epidemia apenas nos capítulos finais do livro. Ressalta, sobretudo, o comportamento da população marselhesa diante do flagelo. Descreve uma cidade praticamente abandonada por seus habitantes, fugindo dos focos da enfermidade visando se livrar do contágio. Traça, porém, a diferença dessas “fugas”, de acordo com as respectivas classes sociais.

Zola enfatiza que os pobres iam para os campos, onde permaneciam em abrigos improvisados, precários e insalubres ou nem isso, pois que na maioria dos casos tinham por teto somente “as estrelas”. Já os ricos seguiam para luxuosas mansões de veraneio, onde não faltava nada e onde chegavam até a esquecer que Marselha enfrentava devastadora epidemia. Na cidade, propriamente dita, só ficavam os doentes e algumas almas caridosas (poucas) que se encarregavam de tratá-los na tentativa de salvar suas vidas ou para que os moribundos não tivessem mortes mais sofridas do que já teriam, relegados ao abandono. Estavam, nesses casos, muitos médicos (cujo heroísmo Zola destaca) e alguns funcionários públicos, fieis à missão de servir, fossem quais fossem as circunstâncias. Esses aspectos são os que mais me chamaram a atenção nesse livro que merecia muito mais destaque do que o que teve.

Transcrevo este pequeno trecho (com minha tradução que, admito, é um tanto canhestra), que resume o comentário acima. Zola escreve: “(...) Pouco a pouco, Marselha se tornou vazia e desolada. Só ficaram pessoas de valor que combatiam e desprezavam a epidemia. Ficaram elas e os pobres diabos, obrigados a permanecer em seus postos, apesar dos seus temores. Se houve atos de covardia, fugas bruscas de médicos e de funcionários, também houve atos de energia e de dedicação. Desde o princípio, organizações de socorro haviam sido instaladas nos bairros mais afetados e ali homens se dedicavam, dia e noite, em aliviar o sofrimento da população convulsa, morta de medo, que não tinha como fugir da cidade e muito menos para onde ir (...)”.

Ressalta, sobretudo, em “Os mistérios de Marselha” a verossimilhança dos relatos, que batem, rigorosamente, com os registros históricos feitos por historiadores. Afinal, não se pode perder de vista o fato de que o livro é uma obra de ficção, na qual o autor poderia criar o que e como bem quisesse. O fulcro do enredo é uma bela história de amor que, no fim da narrativa, descobrimos que, a despeito do empenho dos personagens, se mostrou “impossível” de ter um final feliz. Mas não farei uma sinopse, uma resenha que seja desse empolgante romance (ou novela, como queiram), pois este não é meu objetivo. Ademais, se o livro vier a ser lançado no Brasil (o que espero que aconteça) não quero ser estraga prazeres e arruinar a surpresa do seu desfecho. Pelo exposto, portanto, contesto a classificação que alguns críticos dão a essa excelente narrativa como sendo “obra menor” de Emile Zola. Quem duvidar do que afirmo, que leia “Os mistérios de Marselha” e tire as próprias conclusões.



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