Chateaubriand descreve
reações dos parisienses ao cólera
Pedro
J. Bondaczuk
A descrição feita por
François-René de Chateaubriand, em um dos volumes da sua monumental obra
memorialística intitulada “Memórias de ultratumba”, sobre a epidemia de cólera
em Paris, iniciada em 1830 e que se estendeu por pelo menos dois anos, é
detalhada, realística, crua mesmo, constituindo-se em precioso documento
histórico e, sobretudo, num vivo testemunho comportamental desse trágico evento. Chama a atenção, nesse
seu relato, particularmente a forma como determinadas pessoas se comportaram
diante da possibilidade de virem a ser contaminadas pela mortal enfermidade.
Parte da população parisiense, por exemplo, agiu de forma quase normal, como se
não houvesse essa tétrica ameaça no ar, tocando suas atividades sem alterar a
rotina, ou alterando-a muito pouco. Houve até quem fizesse anedota com a
situação, quem sabe (provavelmente) para dissimular seu medo. Enfim, as reações
foram as mais variadas, indo de um extremo ao outro. Ou seja, da indiferença
(ou quase) ao absoluto terror.
A edição, do volume das
memórias de Chateaubriand, que tenho em mãos, em que ele narra essa epidemia, é
a espanhola. É dela que transcrevo os trechos que entendo serem os mais
reveladores (cuja tradução, livre, me atrevo a fazer). O escritor observa, por
exemplo, em determinado trecho: “(...) Se a praga houvesse ocorrido entre nós
em um século religioso, que se houvesse se estendido à crônica dos costumes e
das superstições populares, até se justificariam determinadas atitudes
injustificáveis. Imagine-se uma onda mortífera tremulando, como uma bandeira,
acima das torres da catedral de Notre-Dame; o canhão disparando, a intervalos,
tiros solitários para avisar viajantes imprudentes do perigo a que iriam se
expor; um cordão de soldados rodeando a cidade, sem deixar ninguém entrar; as
igrejas lotadas de uma multidão gemente; os padres salmodiando, dia e noite, as
rezas de uma agonia perpétua; os sinos tocando sem cessar o toque dos defuntos;
os monges, crucifixos nas mãos, exortando nas esquinas o povo a fazer
penitência, pregando a ira e a justiça de Deus, que se haviam manifestado sobre
os cadáveres enegrescidos pelo fogo do inferno (...)”. E tudo isso aconteceu.
Chateaubriand pondera:
“(...) O cólera nos chegou num século de filantropia, de incredulidade, de
jornais e de administração material (...) Vi bêbados sentados diante da porta
das tabernas, bebendo diante de uma mesinha de madeira e dizendo, erguendo seus
copos: ‘à tua saúde, Morbus!’. E Morbus, agradecido, chegava silencioso e eles
caíam mortos debaixo da mesa. As crianças criaram até uma brincadeira com o
cólera em que chamavam o herói de Nicolás Morbus e o vilão de Morbos. A doença tinha também seu terror: um sol
brilhante, a indiferença da multidão, a rotina ordinária da vida, que seguia,
em todos os lugares, seu curso normal. Tudo isso dava, as esses dias de peste,
um caráter novo. E um outro tipo de terror. Sentia-se um mal estar difuso em
todo o corpo. Um vento do norte, seco e frio, o ressecava. O próprio ar tinha
certo sabor metálico, que entrava pela garganta (...)” O que tudo isso significava? Significava
medo, que cada qual sentia, mas tentava dissimular à sua maneira.
Chateaubriand também
descreve as várias quebras de rotina em Paris, determinadas pela epidemia, como
neste trecho: “(...) Na rua de Cherche-Midi, alguns carros do depósito de
artilharia eram utilizados para transportar os cadáveres. Na rua de Sévres,
desolada totalmente, em particular numa viela, os carros fúnebres iam e vinham,
de porta em porta, sem poder atender a todos. Continuamente alguém gritava das
janelas das casas: ‘coveiros, aqui!’. O condutor do veículo respondia que o
carro já estava lotado e que não podia atender a todos. Um dos meus amigos, o
senhor Pouqueville, convidado, num dia de Páscoa, a comer em minha casa, ao
chegar à altura do Monte Parnaso, foi detido por uma fila de caixões de
defunto, quase todos levados nos braços pelas pessoas. Viu, nessa tétrica
procissão, o corpo de uma jovem, sobre o qual haviam colocado uma coroa de
rosas brancas. O cheiro de cloro que este florido ataúde exalava, todavia,
parecia contaminar a toda atmosfera ao seu redor (...)”;
Como se vê, nem todos
agiam como se nada de anormal estivesse acontecendo na cidade. E nem poderiam
agir dessa forma. Pessoas e mais pessoas seguiam morrendo e seus corpos tinham
que ser imediatamente removidos e sepultados, para não agravar ainda mais a
situação. Chateaubriand descreve mais episódios dessa tragédia em Paris: “(...)
Da praça da Bolsa, onde vários grupos de operários se reuniam, viam-se
desfilar, até às onze horas da noite, em direção ao cemitério de Montmartre,
precedidos de tochas, multidões
cantando a Parisiense. A Ponte
Nova achava-se obstruída com centenas de macas cheias de doentes que eram
conduzidos aos hospitais, ou de mortos que havia expirado no caminho (...) os
carros fúnebres estavam ocupados por cinco ou seis caixões amarrados com
cordas. Os ônibus e carroças de aluguel serviam para o mesmo uso: para
transportar cadáveres para o cemitério. Não era raro ver um cabriolé elegante
com uma pessoa morta na sua frente (...)”.
O desconhecimento do
que causava a epidemia foi a causa de vários assassinatos e linchamentos,
conforme Chateaubriand informa: “(...)
Em Paris, vários donos de bares foram acusados de provocarem o cólera
envenenando vinhos, licores e outras bebidas, além de alimentos. Muitos deles
foram assassinados, tiveram os corpos arrastados pelas ruas e depois jogados no
Sena. Muitas autoridades tiveram que se precaver, acusadas por seus desacertos
ou omissões (...)”. Entre as vítimas do populacho estavam alguns médicos,
farmacêuticos e até sacerdotes, todos acusados de envenenarem as pessoas, a
pretexto de tratarem delas. A paranoia eliminou o bom senso.
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