O escândalo da pobreza
Pedro J. Bondaczuk
Os norte-americanos são
extremamente sensíveis a críticas ao sistema capitalista, a base e a razão de
ser de toda a prosperidade dos EUA, que levou esse país, disparadamente, a se
situar entre as sociedades mais ricas já existentes no Planeta em todos os
tempos.
Apenas
para que o leitor tenha uma idéia, sua população, estimada atualmente em 240
milhões de habitantes (5,3% dos 4,5 bilhões que vivem no mundo) detém em mãos
pouco menos de 50% de toda a riqueza mundial, somada e acumulada desde o início
da civilização.
O
Produto Nacional Bruto de 157 países ascende a US$ 7,8 trilhões. Apenas o
norte-americano, sozinho, é de US$ 3,5 trilhões. Portanto, quanto ao aspecto
acumulação de riqueza, ninguém pode negar o sucesso do capitalismo nos EUA.
Aliás, no mundo ocidental, o que se combate, a rigor, não é esse sistema,
quando praticado tendo em vista não
apenas o lucro pelo lucro, mas o desenvolvimento pleno do ser humano, da sociedade
e do mundo.
O
capital é indispensável quando serve ao homem, mas é um instrumento injusto
quando o escraviza. O que se reprova são as distorções e desvios do
capitalismo, que descambam para a prática imoral, e esta sim condenável sob
qualquer aspecto que se olhe, da pura exploração do semelhante.
Foi
este o sentido que o clero dos EUA quis dar ao polêmico rascunho de documento
de 112 páginas, que a Conferência Nacional dos Bispos Norte-Americanos divulgou
na semana passada, abordando, acima de tudo, o escândalo social e moral da
pobreza.
O
trabalho divide-se em duas partes distintas. Uma fala sobre os problemas
econômicos que envolvem 15% da população dos EUA, classificados nos critérios
clássicos de pobreza. Outra, enfoca a delicada questão da dívida externa, que
estrangula cerca de 77 países, levando milhões de pessoas ao desemprego, à fome
e à mais absoluta e abjeta das misérias.
No
âmbito doméstico, os bispos afirmam ser inconcebível, senão intolerável, que
praticamente 60 milhões de norte-americanos não tenham acesso às condições mínimas
para uma vida decente, quando outros 180 milhões têm de sobra, até para
esbanjar. Que 8 milhões de chefes de família não possuam meios para sustentar
seus dependentes, condenados irremediavelmente a uma vida à margem da sociedade
hedonística e consumista que se implantou no país mais rico e poderoso do
Planeta.
No
plano exterior, os religiosos dos EUA defendem uma suavização nas condições de
pagamento dos US$ 850 bilhões que os Estados do Terceiro Mundo devem, de cujo
montante as três Américas têm uma participação de US$ 350 bilhões, dos quais
quase US$ 100 bilhões cabem apenas ao Brasil pagar.
Nesse
sentido, o documento dos bispos deplora uma mudança verificada na política
exterior norte-americana, mormente no governo de Ronald Reagan. Assinala que
tempos atrás, as preocupações dos EUA no plano exterior davam ênfase ao homem,
embora muitas vezes assumindo posturas paternalistas, que acostumaram mal
determinados povos, que passaram a se limitar a esperar, de mão beijada, uma
ajuda permanente que vinha se perpetuando através de décadas.
O
que deveria ser feito era se “ensinar o faminto a pescar, ao invés de se lhe
dar o peixe já temperado e frito”. Mas essa ênfase estava bem de acordo com a
natureza e o espírito de solidariedade do povo norte-americano.
Hoje,
segundo o documento, a tendência mudou dramaticamente. E a imensa fortuna dos
EUA tem sido usada, até, como instrumento de chantagem, num enfoque que dá
prioridade à doutrina de segurança nacional em detrimento da justiça social.
Mas reside aí uma enorme contradição.
É
possível um indivíduo abastado construir uma mansão, com todos os requintes
possíveis de luxo e suntuosidade, no meio de uma miserável favela e ainda assim
se sentir seguro em seu interior? O contraste gritante entre os extremos da
riqueza e da pobreza tenderá a acumular ódios e frustrações (isso é típico do
ser humano), que um dia, fatalmente, terminarão por desaguar em violências,
saques e destruições.
O
mesmo se aplica a países. É possível que os EUA, mesmo com o magnífico poderio
militar de que dispõem, se sintam totalmente seguros, cercados por tanta
miséria e falta de perspectivas, como existem ao seu redor no restante das
Repúblicas das Américas?
O
que se defende (e os bispos deixam clara essa posição), não é o mero perdão dessas
dívidas. Os tomadores de empréstimos sabiam (ou pelo menos deveriam saber) das
obrigações que estavam assumindo quando do pedido desse dinheiro.
Acontece
que na maioria dos casos (para não dizer na totalidade), as respectivas
populações sequer foram consultadas sobre esse endividamento. Aliás, a maior
parte dos governos nem mesmo contava com qualquer respaldo popular. Foi imposta
a poder de armas, de repressão e de outras formas, até mesmo mais cruéis, de
coação e de desrespeito à vontade dos governados, alguns com a conivência e até
apoio de Washington.
O
que os endividados querem é uma oportunidade para que esse capital emprestado
renda o que dele se esperava. Ou seja, propicie o desenvolvimento desses
países, para que, com o crescimento do bolo da riqueza, o compromisso possa ser
saldado, sem traumas para nenhuma das partes.
Caso
contrário, todos perdem. Os devedores, que correm o risco de se dissolverem
como sociedades organizadas, diante de desesperadas hordas de famintos. E os
credores, que por conseqüência, em virtude do imediatismo em reaver o capital
aplicado, podem acabar ficando apenas a “ver navios”.
(Artigo
publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 18 de novembro de 1984).
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