Thursday, July 21, 2016

O escândalo da pobreza


Pedro J. Bondaczuk


Os norte-americanos são extremamente sensíveis a críticas ao sistema capitalista, a base e a razão de ser de toda a prosperidade dos EUA, que levou esse país, disparadamente, a se situar entre as sociedades mais ricas já existentes no Planeta em todos os tempos.

Apenas para que o leitor tenha uma idéia, sua população, estimada atualmente em 240 milhões de habitantes (5,3% dos 4,5 bilhões que vivem no mundo) detém em mãos pouco menos de 50% de toda a riqueza mundial, somada e acumulada desde o início da civilização.

O Produto Nacional Bruto de 157 países ascende a US$ 7,8 trilhões. Apenas o norte-americano, sozinho, é de US$ 3,5 trilhões. Portanto, quanto ao aspecto acumulação de riqueza, ninguém pode negar o sucesso do capitalismo nos EUA. Aliás, no mundo ocidental, o que se combate, a rigor, não é esse sistema, quando praticado tendo em  vista não apenas o lucro pelo lucro, mas o desenvolvimento pleno do ser humano, da sociedade e do mundo.

O capital é indispensável quando serve ao homem, mas é um instrumento injusto quando o escraviza. O que se reprova são as distorções e desvios do capitalismo, que descambam para a prática imoral, e esta sim condenável sob qualquer aspecto que se olhe, da pura exploração do semelhante.

Foi este o sentido que o clero dos EUA quis dar ao polêmico rascunho de documento de 112 páginas, que a Conferência Nacional dos Bispos Norte-Americanos divulgou na semana passada, abordando, acima de tudo, o escândalo social e moral da pobreza.

O trabalho divide-se em duas partes distintas. Uma fala sobre os problemas econômicos que envolvem 15% da população dos EUA, classificados nos critérios clássicos de pobreza. Outra, enfoca a delicada questão da dívida externa, que estrangula cerca de 77 países, levando milhões de pessoas ao desemprego, à fome e à mais absoluta e abjeta das misérias.

No âmbito doméstico, os bispos afirmam ser inconcebível, senão intolerável, que praticamente 60 milhões de norte-americanos não tenham acesso às condições mínimas para uma vida decente, quando outros 180 milhões têm de sobra, até para esbanjar. Que 8 milhões de chefes de família não possuam meios para sustentar seus dependentes, condenados irremediavelmente a uma vida à margem da sociedade hedonística e consumista que se implantou no país mais rico e poderoso do Planeta.

No plano exterior, os religiosos dos EUA defendem uma suavização nas condições de pagamento dos US$ 850 bilhões que os Estados do Terceiro Mundo devem, de cujo montante as três Américas têm uma participação de US$ 350 bilhões, dos quais quase US$ 100 bilhões cabem apenas ao Brasil pagar.

Nesse sentido, o documento dos bispos deplora uma mudança verificada na política exterior norte-americana, mormente no governo de Ronald Reagan. Assinala que tempos atrás, as preocupações dos EUA no plano exterior davam ênfase ao homem, embora muitas vezes assumindo posturas paternalistas, que acostumaram mal determinados povos, que passaram a se limitar a esperar, de mão beijada, uma ajuda permanente que vinha se perpetuando através de décadas.

O que deveria ser feito era se “ensinar o faminto a pescar, ao invés de se lhe dar o peixe já temperado e frito”. Mas essa ênfase estava bem de acordo com a natureza e o espírito de solidariedade do povo norte-americano.

Hoje, segundo o documento, a tendência mudou dramaticamente. E a imensa fortuna dos EUA tem sido usada, até, como instrumento de chantagem, num enfoque que dá prioridade à doutrina de segurança nacional em detrimento da justiça social. Mas reside aí uma enorme contradição.

É possível um indivíduo abastado construir uma mansão, com todos os requintes possíveis de luxo e suntuosidade, no meio de uma miserável favela e ainda assim se sentir seguro em seu interior? O contraste gritante entre os extremos da riqueza e da pobreza tenderá a acumular ódios e frustrações (isso é típico do ser humano), que um dia, fatalmente, terminarão por desaguar em violências, saques e destruições.

O mesmo se aplica a países. É possível que os EUA, mesmo com o magnífico poderio militar de que dispõem, se sintam totalmente seguros, cercados por tanta miséria e falta de perspectivas, como existem ao seu redor no restante das Repúblicas das Américas?

O que se defende (e os bispos deixam clara essa posição), não é o mero perdão dessas dívidas. Os tomadores de empréstimos sabiam (ou pelo menos deveriam saber) das obrigações que estavam assumindo quando do pedido desse dinheiro.

Acontece que na maioria dos casos (para não dizer na totalidade), as respectivas populações sequer foram consultadas sobre esse endividamento. Aliás, a maior parte dos governos nem mesmo contava com qualquer respaldo popular. Foi imposta a poder de armas, de repressão e de outras formas, até mesmo mais cruéis, de coação e de desrespeito à vontade dos governados, alguns com a conivência e até apoio de Washington.

O que os endividados querem é uma oportunidade para que esse capital emprestado renda o que dele se esperava. Ou seja, propicie o desenvolvimento desses países, para que, com o crescimento do bolo da riqueza, o compromisso possa ser saldado, sem traumas para nenhuma das partes.

Caso contrário, todos perdem. Os devedores, que correm o risco de se dissolverem como sociedades organizadas, diante de desesperadas hordas de famintos. E os credores, que por conseqüência, em virtude do imediatismo em reaver o capital aplicado, podem acabar ficando apenas a “ver navios”.

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 18 de novembro de 1984).


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