Ação filantrópica que
gerou aguda crise política
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor francês
(também ensaísta, diplomata e político), François-Rene de Chateaubriand, foi
mais um dos raros homens de letras a tratar da epidemia de cólera, iniciada em
1830 (que se estendeu até 1832), em Paris e que, em apenas seis meses, causou a
morte de 19 mil pessoas. Sua abordagem, todavia, foi muito diferente da feita
pelo poeta alemão Heinrich Heine, na qualidade de correspondente do jornal
Allgemeine Zeitung, com seu nu e cru realismo. Foi, isso sim, muito próxima dos
relatos feitos por Anais Bazin. Tal como seu colega historiador, Chateaubriand
não escondeu, sobretudo, seu assombro, sua surpresa pela forma com que a
sociedade parisiense reagiu à doença: com uma mescla de indiferença, de cinismo
e de medo.
Como se vê, não raro um
mesmo fato comporta múltiplas interpretações, dependendo de quem o observa e
interpreta. Ademais, essas testemunhas têm a tendência de generalizar, o que,
queiram ou não queiram, é, no mínimo, grande estupidez. Por isso, manda a
prudência que, sempre que possível, lancemos mão de mais de uma versão no
relato de determinados acontecimentos que não testemunhamos. Chateaubriand tratou da epidemia do cólera
(como havia tratado, volumes antes, da peste bubônica) em sua vasta obra
memorialística “Memórias de ultra tumba”, consistente de um punhado de tomos,
abrangendo quase meio século da vida do seu país. Ao contrário de Bazin, e como
político que era, e mais, como homem de muitas posses, o escritor não se limitou a relatar o impacto
da doença na população da cidade (embora também o fizesse de maneira bastante
meticulosa). Tentou assistir, e não com verbas públicas, mas com seu próprio
dinheiro, com seu patrimônio pessoal, os
mais pobres e desassistidos, possibilitando-lhes enfrentar essa tragédia
sanitária.
Não tratarei, de novo,
da vida e da obra de Chateaubriand, para não ser redundante. Já tratei deste
assunto (embora de forma hiper resumida) em texto anterior, quando comentei sua
abordagem sobre uma das tantas epidemias de peste bubônica que assolaram a
França. Reitero, porém, que o escritor exerceu fundamental influência na
literatura romântica, tanto da França como de várias partes do mundo, como um
dos maiores estilistas do século XIX, sendo considerado, hoje, com justiça,
como um “clássico” que de fato é.
Voltando, porém, a
tratar de sua abordagem do cólera, observo que ele se estendeu muito, em seu
relato, sobre uma triste polêmica política, gerada indiretamente pela epidemia,
que mostra como muitos homens públicos são mesquinhos e insensíveis, pensando,
exclusivamente, em suas carreiras, sem a menor preocupação humanitária ou
social. Explico qual foi tal controvérsia. Chateaubriand quis fazer, como
mencionei acima, donativos em dinheiro para ajudar as vítimas do cólera e suas
famílias, todas das classes menos favorecidas (a maioria dos atingidos, por
sinal) a lidarem com o terrível problema. Afinal, destaque-se, era homem
abastado e tinha recursos pessoais suficientes para isso.
Mas... para que pensou
nisso?!!! Sua atitude foi imediatamente distorcida e mal interpretada. E justo
por quem? Pelos que tinham a obrigação de fazer, mas que nada faziam, alguma
coisa útil e concreta em favor da população desassistida da cidade, à qual,
aliás, haviam jurado servir quando nos palanques. A atitude filantrópica de
Chateaubriand gerou, isso sim, grave crise política na cidade. Muitos
subprefeitos de distritos de Paris rechaçaram o auxílio oferecido pelo
benemérito escritor, argumentando, vejam só, que o providencial socorro
pecuniário poderia ser entendido como uma espécie de “suborno” aos cidadãos,
para que aprovassem suas teses políticas. Disseram, entre outras coisas, que a
atitude poderia, até, provocar motins populares entre as pessoas contrárias às
idéias políticas de Chateaubriand.
Bem, nem todos
subprefeitos recusaram a ajuda. Quando o dinheiro chegou aos distritos que a
aceitaram não houve, óbvio, nenhum problema entre os beneficiados. Ninguém se
amotinou e nem viu segundas intenções nesse ato. Esse auxílio, certamente, salvou muitas
vidas e ajudou as famílias das vítimas que não conseguiram sobreviver a criarem
alternativas para tempos posteriores à epidemia. Além do mais, Chateaubriand
nunca exigiu, em troca, nenhuma espécie de recíproca, qualquer vantagem
pessoal, nem mesmo a gratidão dos assistidos, o que desmente as alegações de
seus adversários de que a providencial ação filantrópica poderia ser
interpretada como “suborno”. Foi, isto sim, meritória e benigna atitude
humanitária, que deveria ser imitada, e jamais contestada, sob qualquer
alegação.
Aliás, as únicas
reações contrárias vieram exatamente da elite (vejam só!), ou seja, das classes
dirigentes. Estas chegaram, até, a destituir de seus cargos vários dos
subprefeitos que apoiaram essa providencial (e, convenhamos, rara) ação
filantrópica do escritor. Triste exemplo dado por políticos ignorantes,
despreparados, oportunistas e cínicos, que não conseguiam pensar em outra coisa
se não em suas fúteis e transitórias carreiras. Eram, como se vê, tão medíocres
e vazios como os inúmeros dos nossos tempos. Não estranho, portanto, e nem um
pouco, a sucessão de motins, com barricadas nas ruas e sangrentos combates
corpo a corpo na cidade, que passaram para a História sob o título genérico de
“Revolução de 1830”, mas que se estenderam muito além desse trágico ano. Com
políticos dessa espécie, seria de se admirar que a população, largada ao deus
dará e em desespero, não se rebelasse, embora a sucessão de revoltas nunca
tenha redundado em nada melhor do que a turba combatia, a não ser em “mais do
mesmo”.
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