Nem tão sagrado assim
Pedro
J. Bondaczuk
A religião, ou seja, a
busca incessante do homem por sua origem e finalidade, é um dos temas mais
explorados por romancistas de todas as partes e épocas. Em geral, porém, suas
abordagens são de aspectos nem tão sagrados assim. Ou seja, apresentam, em suas
histórias, comportamentos usualmente distorcidos e pecaminosos dos que se
propõem a “representar Deus na terra”: sacerdotes e outros líderes religiosos.
Eu poderia citar uma
infinidade de romances com essas características, tendo por foco as principais
religiões existentes, mas não o farei. O leitor, certamente, conhece, de
sobejo, livros e mais livros com essa temática. Mencionarei, apenas, e de
passagem, alguns dos romances mais famosos que têm religiosos como personagens.
Entre estes, pode ser
citado, por exemplo, “O crime do padre Amaro”, de Eça de Queiroz. Ou “Eurico, o
presbítero”, de Alexandre Herculano. Ou “O seminarista”, de Inglês de Souza.
Outro romance famoso, envolvendo sacerdote, é “La faute de l’abbé Mouret”, de
Emile Zola. Escrito em 1875, foi o quinto volume da série “Os Rougon-Marquart”.
Nessa primorosa obra, o autor (como fizeram os demais citados), trata da
contradição entre a vocação religiosa e o amor carnal.
O personagem central,
padre Serge Mouret, excede-se em mortificações, no intuito de aproximar-se da
Virgem Maria, por quem acha que tem profunda devoção. Adoece. Enviado ao campo
para se recuperar, conhece Albine, que o trata com o máximo desvelo. Não tarda,
porém, a apaixonar-se profundamente por essa bela mulher, pela qual é
correspondido e com a qual vive um amor sem reservas e nem restrições, como
Adão e Eva no Paraíso.
Há romances que, dadas
algumas opiniões desabonadoras contra determinada religião, posto que só
embutidas no enredo e apresentadas por um ou vários personagens, geram polêmica
e chegam a ser proibidos aos fiéis. Um desses casos é o ainda recente livro de
Ron Brown, “O Código da Vinci”, campeoníssimo de vendas mundo afora, que
dispensa comentários.
Mas nem todos os
escritores que têm alguma religião por tema as apresentam pelos seus aspectos
mais negativos. O australiano Morris West, por exemplo, escreveu dois
primorosos livros, ambos best-sellers, que nunca mereceram reparos do Vaticano
ou dos fiéis. No primeiro, “O advogado do diabo”, nos revela, através de uma
história muito bem-urdida, como é o processo de investigação da vida e das
virtudes dos candidatos à beatificação. No segundo, “As sandálias do pescador”,
traz à baila o comportamento pio e benévolo de um papa (que lembra muito João
Paulo II, embora o romance tenha sido escrito muito tempo antes de Carol
Woijtyla assumir seu pontificado). .
Há romances em que a
religião não é, propriamente, o tema do enredo, mas se faz presente nas
entrelinhas. Um desses casos é o do livro “Olhai os lírios do campo”, de Érico
Veríssimo, no qual o autor faz esta belíssima reflexão, no capítulo 13: “Deus é
tão poderoso que está presente até nos pensamentos dos que dizem não acreditar
na sua existência. Nunca encontrei um ateu sereno. Eles se preocupam tanto com
Deus como o melhor dos deístas”.
Ou esta, a propósito do
Sermão da Montanha: “Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de
livros, perto do rádio, e leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será
difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens
deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala
dos lírios do campo que não trabalham nem fiam e no entanto nem Salomão em toda
a sua glória jamais se vestiu como um deles. Está claro que não devemos tomar
as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar de papo para o ar esperando que
tudo nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas
passivas seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano
às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver
deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves
do céu”.
Eça de Queiroz, por seu
turno, no romance “A cidade e as serras”, escreveu o seguinte, a respeito da
presença divina em nosso dia a dia: “Do astro ao homem, do homem à flor do
trevo, da flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula,
como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa numa
fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até as mais humildes,
até as que parecem inertes e invitais”. E complementou, em outro trecho: “Ele
(o castanheiro sobre o qual se referia) me fez sentir como toda a sua vida de
vegetal é isenta de trabalho, da ansiedade, do esforço que a vida humana impõe;
não tem de se preocupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o abrigo,
filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que ele se mova ou se inquiete. E é
esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta majestade”.
E por que os
romancistas atentam, com maior assiduidade, para as contradições e
comportamentos corrompidos dos que se propõem a ser os guardiões e propagadores
de determinadas religiões? Talvez a resposta esteja na constatação feita pelo
escritor Julien Green, no livro “Diário”, ao observar: “Em cada um de nós há um
pecador e um santo. Tanto um quanto o outro se desenvolvem, cada qual em seu
próprio plano. Tanto um quanto o outro, e não um ou o outro. Ambos ao mesmo
tempo. Enquanto o santo se desenvolve – se o homem é um santo – o pecador
dentro dele se desenvolve apenas no plano imaginativo... Se o homem é um
pecador – isto é, se o pecador leva mais vantagem que o santo –, o santo se desenvolve
o melhor que pode no plano imaginativo (um desejo de santidade). É por isso que
um pecador convertido nunca começa do nada. Fez algum progresso durante sua
vida de pecado”.
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