Prazer ou obrigação?
Pedro
J. Bondaczuk
Diz-se, amiúde, por aí,
com ares de dogma, que para fazermos bem alguma coisa, qualquer coisa, é
indispensável que gostemos do que fazemos. Vou bancar o chato e, mais uma vez,
contradizer uma afirmativa, no caso esta. Não se trata de regra universal e
infalível que não comporte exceções. Aliás, toda a regra tem lá a sua. E por
que esta não haveria de ter?
Conheço pessoas que
detestam o que fazem, mas executam bem o que lhes compete fazer. Fazem-no por
obrigação, para honrarem compromissos assumidos e não decepcionam quem confia
nelas. Tenho um amigo escritor que é assim. Conheço-o há anos e sei que detesta
escrever. Por que esse espanto? O mais curioso é que tem um talento fantástico
para a literatura. Tamanho, que extrapola sua vontade.
É autor de vários
livros e nenhum encalhou nas prateleiras das livrarias. Tem contrato bastante
extenso com uma editora de porte médio e nunca deixou de cumpri-lo. A cada seis
meses, “comparece” com um novo livro e cada um é melhor do que o outro.
Porém... detesta escrever.
Trata-se de um sujeito
alegre, de bem com a vida, que aprecia tudo o que de bom ela tem para nos
proporcionar: boa comida, bebidas de refinado gosto, mulheres bonitas, amizades
fraternas etc.etc.etc. Está sempre sorrindo e, invariavelmente, tem uma anedota
inteligente e engraçada na ponta da língua.
É dos raros escritores
no País que sobrevive de literatura. Como se vê, é um cara bem-resolvido,
bem-sucedido e conhecidíssimo (não vou revelar quem é, para não perder sua
amizade, pois sou daqueles que contam o “milagre”, mas não revelam o “santo”).
Lá um belo dia, no
entanto, esse meu amigo muda bruscamente de comportamento. Fica mais calado,
não raro até taciturno, não participa das patuscadas da turma (essa “patuscada”
fui buscar lá no fundo do baú), e volta e meia percebemo-lo distraído, como que
fora do mundo. Nessas ocasiões, invariavelmente, ele se confessa “grávido”.
Grávido de um novo livro.
Afasta-se de nós por
algumas semanas e quando retorna ao nosso convívio, é como se nunca tivesse
mudado. Volta a ser o mesmo sujeito alegre de sempre, amante de boa comida, de
bebida de refinado gosto, de mulheres bonitas e retorna com anedotas
inteligentes e engraçadíssimas na ponta da língua. Passado algum tempo, ficamos
sabendo que emplacou outro sucesso literário. E ele jura que detesta escrever.
Não tem blog e nem site
na internet, recusa-se a colaborar com os que os têm, a muito custo consegui
arrancar uma crônica dele para o jornal em que trabalhava na ocasião e evita de
se expor. Convidei-o para ser colunista do Literário e, por muito pouco, ia
perdendo um amigo. Ficou uma fera comigo e disse para eu não mais chateá-lo.
Não o chateei, claro.
Fora do período de
“gravidez”, quem não o conheça bem, jamais acreditará que se trate de um
escritor, e dos consagrados. Mas é. E vem emplacando sucesso após sucesso, e
sem gostar de escrever. Como explicar isso? Sei lá!
Há, contudo, algo que
deveria ser sempre prazeroso para todos, mas que para algumas pessoas não é: a
leitura. Alguns professores entediados (é verdade que remunerados muito aquém
da importância da sua função), e temo que seja a maioria, vêm transformando, há
já bom tempo, esse refrigério da mente (e da alma) do grande prazer que deve
ser, em verdadeira tortura.
Em vez de motivarem os
alunos a ler, mostrando-lhes o quanto isso pode ser não somente útil, mas,
sobretudo, prazeroso, impõem-lhes esse exercício como simples e maçante
“obrigação”. E dessa forma, a coisa não funciona nunca. Muitos são até
reprovados de série por não saberem interpretar corretamente determinado texto,
em geral de algum clássico da literatura brasileira, o que acentua sua repulsa
pelos livros.
Há escolas, porém, que
agem ao contrário. Em vez da ameaça implícita de castigo aos alunos, caso não
leiam determinado livro e não o interpretem corretamente, optam pelo incentivo.
Algumas (todas particulares e, portanto, pagas), fazem da leitura matéria
extracurricular, que não vale para a atribuição de nota, promovendo autênticos
saraus literários, ocasião em que os jovens descobrem que o que lhes parecia
objeto de tortura, é, na verdade, inesgotável fonte de prazer (além de
conhecimento, claro).
Há colégios (geralmente
os mantidos por denominações religiosas), que realizam concursos anuais, dos
quais podem participar todos os alunos, de todos os cursos que têm. Os melhores
textos são meticulosamente revisados, criteriosamente editados e reunidos numa
antologia anual, vendida para a cobertura dos custos aos próprios
participantes, aos demais estudantes, bem como aos seus pais.
Esses volumes
permanecem na biblioteca da escola, para consulta em anos seguintes. E os
jovens autores sentem orgulho imenso por integrar tais antologias. Eu mesmo já
revisei e editei vários desses livros e notei que a qualidade teve sensível
evolução de um ano para outro.
Esse procedimento
estimula não somente a leitura, como, e principalmente, a redação. Muitos
desses alunos já manifestaram, ao cabo de palestras que fiz nessas escolas,
interesse em se tornarem escritores. Não tenho dúvidas que vários deles se
tornarão. E os que não se tornarem, serão, com absoluta certeza, leitores
compulsivos, para o resto de suas vidas. Porquanto assimilaram corretamente a
lição de que a leitura é um imenso prazer, sempre, e jamais a temida tortura
que muitos e muitos alunos, infelizmente, entendem que seja.
Guardadas as devidas
proporções, sou mais ou menos como esse meu esquisito amigo que citei. Sou
alegre, aprecio todos os prazeres da vida – boa comida, bebida de refinado
gosto, mulheres bonitas, amizades fraternas etc.etc.etc. – e tenho sempre uma
anedota na ponta da língua (só não sei se tão engraçadas como as dele). Lá um
belo dia, também, sinto os sintomas da “gravidez” de um novo livro. Mas nossas
semelhanças param por aí.
Ao contrário dele, não
tenho como me afastar para um “parto” tranqüilo e sem ser incomodado por
ninguém. O nascimento de um novo livro ocorre publicamente, em meio a mil e uma
atividades, nos intervalos entre uma e outra.
Tenho uma infinidade de
compromissos a cumprir e, estejam certos, cumpro-os todos à risca. Mas essa não
é a nossa principal diferença. Ao contrário do meu ilustre amigo, gosto de
escrever. Não faço o sucesso dele, mas também não tenho do que me queixar nesse
aspecto. Como se vê, não é o prazer pelo que se faz que determina seu êxito ou
o seu fracasso. É o talento. E este você pode ter, gostando ou não de tê-lo.
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