Wednesday, December 16, 2015

Voz aos imbecis

Pedro J. Bondaczuk

O italiano Umberto Eco é mais conhecido, mundo afora (excluídos os círculos acadêmicos) como romancista. Seu romance mais famoso, que qualquer leitor razoavelmente bem informado conhece (mesmo que não o tenha lido), é “O nome da rosa”. Esse livro valeu-lhe, entre outros tipos de reconhecimento, o Prêmio Médicis de Melhor Livro Estrangeiro na França. Essa mesma obra ganhou ampla repercussão ao ser adaptada para o cinema por Jean-Jacques Annaud, tendo nos principais papeis os atores Sean Connery (que se celebrizou por interpretar James Bond, o 007, em alguns filmes da série) e Christian Slater. Outros romances de Humberto Eco, posto que não tão populares, são: “O pêndulo de Foucault”, “A ilha do dia anterior”, “Baudolino”, “A misteriosa chama da rainha Loana”, “O cemitério de Praga” e o recém-lançado no Brasil “Número Zero” (Editora Record), sobre o qual farei, na sequência, alguns comentários que considero pertinentes. Sua especialidade, porém, não é, propriamente, a literatura de ficção, a qual passou a exercer somente na década de 80 do século XX, quando já contava com mais de 50 amos de idade.

Umberto Eco é, sobretudo (e sempre foi) reputado filósofo. É, todavia, desses intelectuais que costumo chamar de “homens dos sete instrumentos”, mesmo que não seja, exatamente, este o número das atividades que exerce. É, também, semiólogo, lingüista e bibliófilo. Como escritor, mais do que seus romances, sou ávido leitor de seus ensaios, sobre artes, filosofia, semiótica, cultura em geral e até política, entre tantos outros temas. É, como se vê, aos 83 anos de idade (completados em 5 de janeiro de 2015), um dos intelectuais mais bem preparados, ecléticos e cultos da atualidade. E, também, dos mais polêmicos. Basta que dê alguma declaração sobre os tantos assuntos de que é “expert”, para que esta ganhe, de imediato, repercussão internacional, dada a credibilidade de que goza. Tem, óbvio, uma legião dos que o detestam, combatem e divergem dele, não raro sem nem mesmo contar com motivo lógico e bem fundamentado para divergências.

Umberto Eco tem se mostrado, entre outras tantas posturas que assume, implacável crítico do papel destinado às novas tecnologias no processo de divulgação de informações (jornalísticas ou não). O que o incomoda, sobretudo, é o acesso de pessoas ou despreparadas, ou mal intencionadas, ou sem critério, ética e nem técnica, ao papel de difusoras de “notícias”, que não raro não passam de meros e grosseiros boatos, de formas irresponsáveis de difamação e de ataques à honra alheia, sem nenhuma base em provas. E esse tipo de gente causa estragos medonhos e, pior, encontra respaldo, defesa e apoio populares e não é fiscalizado e nem coibido por ninguém, a pretexto de uma “liberdade de expressão” que nesses casos é incabível. O escritor cita, especificamente, a televisão; mais recentemente a internet (com sites e blogs cujos donos não dão satisfações a ninguém) e, mais recentemente ainda, as redes sociais que, na sua contundente conceituação, “dão o direito à palavra a uma legião de imbecis”.

Claro que não se pode generalizar. Mas qualquer pessoa de bom senso, com um mínimo de conhecimento de comunicação e, sobretudo, de ética e de leis, é forçada a lhe dar razão. Essa tão polêmica (e corajosa) declaração foi dada por Eco em 10 de junho de 2015, no intervalo da cerimônia de outorga a ele de título de “doutor honoris causa” em comunicação e cultura na Universidade de Turim. Eco ponderou que, antes da existência desses espaços destinados, sobretudo (como o nome indica) a relacionamentos sociais, a tal “legião dos imbecis” existia (sempre existiu), mas destilava seu veneno somente “em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Normalmente, essas pessoas eram imediatamente caladas. Mas agora, têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel”. E, claro, arregimentam multidões de seguidores, que os seguem sem sequer entenderem por que os estão seguindo.

Postagens irresponsáveis nas redes sociais tendem a gerar tragédias irreparáveis, que poderiam ser evitadas se determinados imbecis fossem contidos em sua irresponsável imbecilidade. Exagero meu? Claro que não. Quem não se lembra, por exemplo, do linchamento, que resultou na sua morte, da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, ocorrido no Guarujá, Litoral Paulista, em maio do ano passado?  A mulher foi atacada por uma multidão enfurecida depois da publicação de um retrato falado (que nem mesmo se aproximava da sua fisionomia) em uma página no Facebook de uma pessoa que realizava rituais de magia negra com crianças sequestradas. Tratava-se de caso antigo, ocorrido em outra cidade que nada tinha a ver com o Guarujá e muitíssimo menos com Fabiane. Mas, quando isso foi revelado... já era tarde demais; A tragédia estava consumada. E o caso está longe, muito distante, de ter sido o único, embora seja o mais trágico.

Umberto Eco destacou que “a TV já havia colocado o idiota da aldeia em um patamar no qual ele se sentia superior. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade". Gosto (da parte boa) das redes sociais, onde firmei grandes amizades, retomei contato com pessoas com as quais há tempos não me comunicava e aprendi (e aprendo todos os dias) muitas coisas belas, saudáveis e úteis. Mas nunca me vali desse meio para me informar sobre o que ocorre no dia a dia, mesmo que as informações sejam dadas por jornalistas que conheço e nos quais confio. Afinal, não tenho como saber se eles são (ou não) “fakes”, que se façam passar por quem não são.

Já no romance “Número Zero”, Umberto Eco trata de problema tão grave (ou até muito mais) do que o mau uso das redes sociais, que é o mau jornalismo: sensacionalista, parcial, que distorce fatos, venal e mentiroso, infelizmente cada vez mais comum mundo afora. É algo de tamanha gravidade, que o ilustre intelectual optou por tratá-lo ficcionalmente, como mera “hipótese”. Mas... este é um assunto que deixarei para outra vez.


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