O fosso intransponível
Pedro
J. Bondaczuk
O lingüista,
orientalista e mitólogo alemão do século XIX, Friedrich Max Müller, concluiu,
em um de seus tantos estudos, que “a linguagem é o fosso intransponível que
separa o homem do animal”. Concordo. Várias outras diferenças (posto que não
todas) podem ser superadas. Mas a impossibilidade de expressão inteligente e
coerente dos animais é insuperável, na comparação com o Homo Sapiens. É voz
corrente que os demais seres vivos que habitam o Planeta não têm consciência do
que são e de onde estão. Vivem (ou vegetam) orientados exclusivamente por
instintos. Não contam, portanto, com nenhum tipo de raciocínio. Será? Tenho
minhas dúvidas. Como ter certeza que os animais não pensam? Duvido que alguém a
tenha. Sua carência (suponho) não é de pensamentos. O que eles não têm, na
minha humilde opinião, é linguagem para expressar o que “pensam”.
Óbvio que não estou
querendo encontrar alhures um “genial” macaco com a argúcia de um Einstein, nem
um golfinho com o raciocínio de Newton e muito menos um cão com a profundidade
de idéias de Descartes. Não é isso.
Esses bichos, claro, não existem, a não ser na imaginação de alguns
ficcionistas. Se algum animal realmente “pensar” (o que intuo que de fato
ocorra) seus pensamentos, com absoluta certeza, serão rústicos e primaríssimos.
Suponhamos, porém, que os seres que consideramos irracionais tenham, mesmo que
de forma reduzidíssima, algo mais do que meros instintos. Ainda assim,
carecerão de algo que temos de sobra e de cujo potencial nem sempre fazemos bom
uso: a palavra. É nela que reside nosso verdadeiro poder e não propriamente no
raciocínio (ou não “apenas” nele). Ele está, de fato, na possibilidade de
podermos comunicar aos outros, de forma coerente e compreensível, nossos pensamentos,
sentimentos e observações. E, claro, de entender essas mesmas coisas quando
comunicadas por nossos semelhantes.
É mister observar,
todavia, que a palavra tanto constrói, quanto destrói. Eleva e rebaixa. Traz
alegria e também tristeza, ira, inquietação e medo. Depende de quando, como,
por quem e a quem é pronunciada. O
humorista norte-americano Leo Rosten definiu, com a precisão que raros
filósofos já conseguiram, a importância e o poder que essa nossa habilidade de
comunicação nos dá. Afirmou, em entrevista que concedeu há uns 60 anos, à
revista “Look”: “Vivemos por palavras: amor, verdade, Deus. Lutamos por
palavras: liberdade, pátria, fama. Morremos por palavras: fortuna, glória,
honra. Elas dão ao nosso espírito e ao nosso coração o dom inestimável da
expressão articulada: desde ‘mamãe’ a ‘infinito’. E os homens que realmente
moldam os nossos destinos, os gigantes que nos ensinam, inspiram e conduzem a
feitos imortais, são aqueles que usam as palavras com clareza, grandeza e
paixão: Sócrates, Jesus, Lutero, Lincoln, Churchill”. Como se vê, é um primor
de declaração e não de um filósofo reputado, mas de um humorista.
É através de palavras
que alguns resquícios da história das civilizações sobreviveram e chegaram até
nós, fragmentos estes de fatos e de
feitos ocorridos antes da invenção da escrita. Muitíssima coisa, obviamente, se
perdeu, porquanto os relatos dependiam da memória dos que tomavam ciência deles
e os transmitiam às novas gerações. Quanto foi perdido? Jamais se saberá! Tenho
certeza que foi muito, muitíssimo! E do que restou, parcela considerável se
deturpou, também, já que, como a experiência tem comprovado fartamente, “quem
conta um conto, sempre acrescenta um ponto”. Vai daí... As palavras são
instrumentos de transmissão de experiências, descobertas e conceitos
fundamentais do homem. Através delas, aprendemos lições imprescindíveis.
Vislumbramos tanto a beleza, quanto o horror.
Dia desses, topei, por
acaso, em meu caótico, posto que vasto arquivo, com fragmento do discurso
fúnebre que o padre Pedro Gomes de Camargo proferiu, em 15 de novembro de 1834,
diante do caixão do regente do Império, Diogo Antonio Feijó, durante seu
sepultamento na igreja do convento de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em São
Paulo. Trata-se de peça oratória notável, que não merece ser esquecida.
Transcrevo o trecho abaixo, para encerrar estas descompromissadas reflexões,
pelo tanto de verdade que encerra: “O que é o homem? Um meio ente, um ser
estropiado posto entre o nada e o túmulo. Desabrocha como a débil flor no
orvalho matutino, mas apenas o astro do dia dardeja seus raios, murcha, definha
e seca. É a sombra fugitiva que não permanece no mesmo estado. É a água que
corre na terra para não mais voltar”. Retórica à parte, é incontestável
verdade. Palavras... Sublimes palavras... Fosso intransponível entre o homem e
todos os outros animais.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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