A impressionante “mulher-objeto”
Pedro
J. Bondaczuk
O conto “A intrusa”, de
Jorge Luís Borges, que abre seu livro “O informe de Brodie”, é um dos mais
impressionantes da literatura mundial. Dá exata medida de como a mulher era (e
ainda é em muitos lugares) tratada em determinadas sociedades. A protagonista
feminina dessa história, Juliana Burgos, torna-se personagem feminina
inesquecível, mas não por suas ações, pensamentos e, sobretudo, sentimentos,
que não são levados em conta. Ela não “age” no enredo. É agente passiva. Sofre.
E toda a sorte de abusos, do material ao sexual, culminando com seu assassinato
– que permanece impune como se fosse a coisa mais natural – sem que sua vontade
seus mais comezinhos direitos sejam levados em momento algum em conta. É,
literalmente, a típica “mulher-objeto”.
É considerada menos do
que um animal, do que os cavalos dos que a submetem à absoluta sujeição, por
exemplo. Juliana Burgos é tratada como propriedade de que se pode dispor como
bem se entender, sem dar satisfação a quem quer que seja. O livro “O informe de
Brodie” é um primor do gênero contos, do qual Borges foi um dos maiores
mestres. A versão que tenho em mãos é a 3ª edição, datada de 1995, lançada pela
Editora Globo, com tradução de Hermillo Borba Filho. Todas as narrativas que o
integram são primorosas. Porém “A intrusa” se destaca, principalmente por
chocar.
É impossível permanecer
indiferente após a leitura desse conto. Borges inicia assim essa primorosa
narrativa: “Dizem (o que é
improvável) que a história foi contada por Eduardo, o mais moço dos Nilsen, no
velório de Cristiano, o mais velho, que morreu de morte natural, cerca de mil
oitocentos e noventa e tantos, em
Morón. O fato é que alguém a ouviu de alguém, durante essa
longa noite perdida, entre um e outro mate, e a repetiu a Santiago Dabove, que
a contou a mim. Anos depois, em Turdera, onde a história acontecera, ouvi-a
novamente. A segunda versão, um pouco mais longa, confirmava em suma a de
Santiago, com as pequenas variações e divergências próprias do caso. Escrevo-a
agora porque, se não me engano, ela é uma imagem breve e trágica da índole dos
antigos ribeirinhos. Farei isso com probidade, mas já prevejo que cederei à
tentação literária de acentuar ou acrescentar algum detalhe”.
A história tem como
personagens centrais os irmãos Cristián
e Eduardo Nilsen, que viviam na mais completa harmonia, até que passaram a
partilhar (pasmem) a mesma mulher, no caso, Juliana Burgos. Borges informa como
tudo começou: “Os
Nilsen eram estouvados, mas suas aventuras amorosas não tinham passado até
então da sala de visitas ou então das casas de tolerância. Não faltaram, pois,
comentários quando Cristiano levou Juliana Burgos para viver com ele. É verdade
que assim ganhava uma criada, mas também não é menos certo que a acumulou de
horríveis bugigangas e que a exibia nas festas. Nas pobres festas de pequenos
bordéis onde os requebros e a lascívia estavam proibidos e onde se dançava,
ainda, com muita luz. Juliana era morena e tinha olhos rasgados; bastava que
alguém a olhasse para que sorrisse. Num bairro modesto, onde o trabalho e o
descaso gastam as mulheres, não era malparecida”.
Essa, aliás, é a única
descrição feita dela. Apesar dos irmãos não considerarem essa mulher sequer
“gente”, a certa altura ela se transformou em pomo da discórdia entre eles.
Quem a levou para casa foi Cristian. No entanto, não tardou para Eduardo
perceber-se “apaixonado” por ela. Mas era paixão exclusivamente animal, carnal,
sexual. Não era, óbvio, amor. Juliana cedeu aos seus impulsos e passou a fazer
sexo com ele. Aliás, com os dois irmãos. Não tinha como evitar. Era a parte
frágil da incomum relação. É verdade que, a princípio, um fingia ignorar que o
outro dormia com aquela mulher. Isso até quando não foi mais possível seguir
ignorando tamanha promiscuidade. À sua revelia, pois não tinha como evitar,
Juliana tornou-se, insisto, pomo da discórdia entre os irmãos, que nunca haviam
brigado até então por motivo algum.
Maria Luiza Bonorino
Machado descreve assim, em seu ensaio “A sombra da mulher em Borges”, a
“solução” encontrada para que a paz doméstica fosse restabelecida: “A
humilhação de se sentirem diminuídos enquanto homens, a ameaça que a mulher
representa à ordem de suas vidas, o ciúme ambíguo que os corrói, os levará a
vendê-la à dona de um prostíbulo em Morón. O dinheiro é dividido entre os dois,
afinal eles são os donos de Juliana. Mas vender a mulher não soluciona a
questão, ambos continuam apaixonados e acabam comprando-a de volta”. E tudo
recomeçou.
Borges narra como as
coisas então ficaram: “Uma
noite, ao voltar tarde do papo na esquina, Eduardo viu o cavalo de Cristiano
amarrado na cerca. No pátio, o mais velho o estava esperando todo ataviado. A
mulher ia e vinha com o mate na mão. Cristiano disse a Eduardo:
-Vou para uma farra na casa de Farias. Aí tens
Juliana; se quiseres, usa-a. O tom da voz era entre mandão e cordial. Eduardo ficou a olhá-lo
durante um certo tempo; não sabia o que fazer. Cristiano levantou-se,
despediu-se de Eduardo, mas não de Juliana, que era apenas uma coisa, montou a
cavalo e saiu trotando, sem pressa. A partir daquela noite a mulher foi
compartilhada por eles. Ninguém jamais saberá os pormenores dessa sórdida união
que ultrajava o decoro do bairro. O arranjo foi bom por umas semanas, mas não
podia durar”.
Não durou.
E a narrativa
prossegue: “Voltaram à mesma vida que já
se contou. A infame solução fracassara. Os dois haviam cedido à tentação de
fazer trapaça. Caim andava por ali, mas o amor entre os Nilsen era muito grande
– quem sabe que durezas e que perigos haviam compartilhado! – e preferiram
descarregar sua exasperação sobre os outros. Com um desconhecido, com os
cachorros, com Juliana que havia trazido a discórdia”. Na cabeça dura daqueles
homens rudes, para lá de primitivos, a mulher estava longe de ser vítima. Era a
vilã que punha em xeque uma amizade jamais antes abalada.
E o que fizeram para
restabelecer os laços fraternos, prestes a serem rompidos? Eliminaram,
literalmente, a causa de suas desavenças. Borges conclui assim esse chocante
conto: “O mês de março estava chegando ao fim e o calor não diminuía. Um domingo (nos domingos as pessoas costumam
recolher-se cedo) Eduardo, que voltava do armazém, viu que Cristiano atrelava
os bois. Cristiano lhe disse: -Vem, temos que deixar uns couros no Pardo. Já
está tudo carregado, vamos aproveitar a fresca. O comércio de Pardo ficava, creio, mais ao sul.
Tomaram pelo Caminho das Tropas e depois por um desvio. O campo ia crescendo
com a noite. Contornaram um restolhal; Cristiano jogou fora o cigarro que
acendera e disse sem pressa: -Vamos trabalhar, meu irmão. Depois os caracarás
nos ajudarão. Eu a matei hoje. Que fique aqui com as suas bugigangas. Já não
causará mais dissabores. Abraçaram-se, quase chorando. Agora, estavam ligados
por outro laço: a mulher tristemente sacrificada e a obrigação de esquecê-la”.
Os irmãos Nilsen, para
quem Juliana Burgos só tinha duas serventias – a de criada ou, pior, a de
escrava e a função de servir de “objeto” (como se fosse dessas bonecas
infláveis vendidas em pornoshops) apropriado para a satisfação sexual de ambos
– até podiam esquecê-la (como ficou implícito que esqueceram). Todavia... o
leitor inteligente e sensível nunca conseguirá esquecer essa personagem
feminina espezinhada, humilhada, usada, abusada e indefesa, descartada como
bagaço de uma laranja cujo caldo tenha se esgotado. Este é um dos contos mais
impressionantes que já li até hoje.
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