Saturday, December 26, 2015

Obsessão por um passado não vivido


Pedro J. Bondaczuk

O ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2014, Patrick Modiano, revela uma espécie de obsessão com o tema referente à Segunda Guerra Mundial. Mais especificamente, mostra-se obcecado com a ocupação da França por parte dos soldados nazistas, em maio de 1940, principalmente da forma como ela se deu. Ou seja, com a ação decisiva dos “colaboracionistas”, dos “entreguistas” do marechal Phillipe Petain, dos que optaram por se submeter a Adolf Hitler e seus asseclas, aceitando um Estado-fantoche, no caso Vichy, em parte do território francês, em vez de lutarem até o fim contra a invasão e posterior anexação da sua maior parte, incluindo a capital, Paris.

Dos mais de 30 livros que Modiano publicou, são raros os que não tratam desse assunto. É preciso ser sumamente talentoso para não ser repetitivo tratando de um único fato histórico específico, como é o caso, evidentemente relevante (e nem se pode sequer insinuar o contrário), mas já distante no tempo, e ainda assim conservar o interesse do público. Só isso, já justificaria o Nobel que recebeu. Acrescente-se a isso seu estilo inovador, e nada óbvio, que faz dele uma novidade no cenário literário mundial, mesmo tratando de forma tão recorrente de um único tema, posto que por ângulos diversos e todos originais.

Um leitor questionou-me, dia desses, a propósito da quantidade de comentários que venho fazendo sobre a obra de Patrick Modiano. Observou que estou dando importância exagerada a esse escritor. Que não dediquei o mesmo espaço a outros tantos ganhadores do Nobel de que tratei. E vai por aí afora em suas críticas. Respeito sua opinião, mas permita-me que discorde dela.  Afinal, o conflito terminou há setenta anos, em 1945, por sinal, o ano em que Modiano nasceu e, ainda assim, o assunto nunca deixou de ser atual. O escritor não viveu, portanto, diretamente, esse drama, que tanto o marcou. Praticamente todos (ou quase) dos que protagonizaram aqueles acontecimentos ou já morreram, ou estão em idade provecta, beirando os oitenta e seis ou noventa anos. Neste caso estão as pessoas que então tinham, digamos, entre 16 e 20 anos, que integraram ou a resistência ou figuraram como colaboracionistas, delatando à Gestapo os conterrâneos que se opunham à perda de autonomia nacional.

Modiano cria personagens tão verossímeis, que é como se os conhecesse pessoalmente e estivesse tratando de pessoas de suas relações pessoais: parentes, amigos, vizinhos, conhecidos etc. Não se limita a apresentá-los, mas penetra em suas mentes e corações e revela o que pensaram e sentiram nas circunstâncias em que ele os envolve em suas tramas. Isso tudo, mais sugerindo do que descrevendo, deixando ao leitor a tarefa de completar seus perfis. Para mim, fica claro que Modiano tenta encarnar, com sucesso, questões íntimas de boa parte dos franceses que até hoje, passados mais de 70 anos da libertação do seu território (ocorrida em 1944), ainda não se conformam com a ocupação do país por tropas do Terceiro Reich e a forma como isso se deu.

O escritor deixa transparecer o orgulho ainda ferido dos seus conterrâneos com este fato que o tempo não conseguiu (e talvez não consiga nunca) apagar. O ganhador do Nobel de Literatura de 2014 promove uma espécie de “catarse” nacional. É como se os franceses, sobretudo os do tempo da ocupação (mas também seus descendentes) estivessem no divã do psicanalista tentando se livrar de certa culpa por não terem feito nada, ou pelo menos não o suficiente para evitar uma possível catástrofe, que poderia, até, ter eliminado, para sempre, a França como país independente e soberano. É o que tentarei captar, e enfatizar, comentando os sete livros dele que tenho em meu poder.

Raramente tive a oportunidade de estar tão bem municiado, de posse de tantas obras de um único ganhador de Nobel. Seria tolo, pois, se não aproveitasse a oportunidade de destacar o que considero relevante e digno de ser ressaltado nela, que não é pouco. Ademais, Modiano enfatizou, em um de seus livros, que “na vida, não é o futuro que conta, é o passado”. Concordo. Porém, aduziria: “desde que saibamos extrair dele lições que nos ensinem a bem viver e a não incorrer nos mesmos erros cometidos”.


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