E se viéssemos a perder
todas nossas memórias?
Pedro
J. Bondaczuk
A amnésia é um drama
terrível na vida de qualquer pessoa. É pior ainda se o afetado por ela for
intelectual, que dependa da memória para sua atividade e que, subitamente, se
veja privado dela. Aliás, é uma tragédia para qualquer um. Você já pensou como
seria se, subitamente, viesse a esquecer tudo o que é, viveu e fez? Se não se
lembrasse de quem amou, dos lugares que conheceu, dos livros que leu, das
músicas que ouviu e vai por aí afora, como seria? E não só isso, o que já é
sumamente trágico. Como se sentiria se esquecesse, até mesmo, quem você é, qual
o seu nome, sua profissão, seu estado civil, seus parentes e amigos e assim por
diante? Essa, porém, é uma situação a que todos estamos sujeitos, embora
(felizmente) seja um tanto rara. Não conheço ninguém que fosse vítima de
amnésia, ou que ainda ostente essa condição. Você conhece, caro leitor?
Provavelmente não.
Por que trago esse
assunto à baila? Porque a amnésia é o tema central do romance de Patrick
Modiano, intitulado “Uma rua em Roma”, publicado pela Editora Rocco nos anos
80, no Brasil (sem nenhuma repercussão) e republicado agora, depois que o autor
conquistou o Prêmio Nobel de Literatura de 2014 e que, acredito, vá repercutir.
Deveria! Trata-se de um livro que, pelo menos aparentemente, difere do padrão
do restante da obra desse escritor. Por exemplo, é mais extenso do que suas
publicações anteriores e posteriores. A edição brasileira tem 224 páginas,
quando os demais livros de Modiano mal chegam a 150. Todavia, seu fulcro
temático, ou seja, o tempo e a memória, é mantido. No caso, com a perda dela e
com a ingente busca do personagem central na tentativa da sua recuperação.
Aparentemente, o
ganhador do Nobel de Literatura de 2014 abandonou outro dos seus temas
recorrentes: a ocupação da França, pelos nazistas, no período de 1940 a 1944,
na Segunda Guerra Mundial. Mas... abandonou? Não! Deixou, apenas, implícito.
Embora em momento algum cite explicitamente essa incômoda realidade para os
franceses, o leitor atento percebe que o período em que o enredo se desenrola é
exatamente esse. Só não entendi, até agora, o título dado ao livro, em
português.
Não lembro de nenhuma
passagem em que as ruas de Roma sejam palco da narrativa. Aliás, o título
original, “Rue des boutiques obscures”, sequer sugere algo que lembre a capital
italiana. Talvez a tradução mais exata (e adequada) devesse ser “Na rua das
lojas escuras” ou algo que o valha. Mas o título, que para mim é inadequado,
não diminui a importância desse romance. Tanto ele é importante, que valeu a
Modiano um dos prêmios de maior expressão e prestígio da França, o “Goncourt de
1978”. Ou seja, os franceses praticamente anteciparam, em 36 anos, o
reconhecimento (agora mundial) do talento desse escritor, que viria com a
conquista do Nobel de Literatura de 2014.
Em “Uma rua de Roma”, o
autor nos convida a acompanhar o empenho do narrador-protagonista, Guy Roland,
há oito anos sofrendo de amnésia, na busca por sua verdadeira identidade. Como
detetive, que de fato era, o personagem procura descobrir seu passado, a
história que havia construído até a perda da memória, os rastros que deixou por
onde passou etc. etc. etc. Vale-se, para isso, de breves relatórios e de
conversas fortuitas que teve. Guy – que parte de uma patética constatação, ao
concluir: “não sou nada” (e não era mesmo por não saber nem quem era – segue
sua intuição para ir atrás de pessoas que poderiam ajudá-lo a refazer seus
próprios passos. Modiano aproveita para trazer à baila questões filosóficas,
que atormentam as pessoas desde quando o homem tomou consciência de que podia
pensar, como “quem sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”.
Modiano não se limita a
descrever a saga de Guy Roland, em busca de saber quem é. Penetra em sua mente,
vasculha seus pensamentos e, sutilmente, nos induz a refletir sobre nossa
própria realidade, nossas memórias, nossas lembranças a que nem sempre damos o
devido valor. Faz o mesmo com tantos outros personagens que alguma vez
mantiveram contato com o desmemoriado. Escreve, a certa altura, reproduzindo o
pensamento de determinado protagonista: “Acho que se pode ouvir ainda, nas
entradas dos prédios, o eco dos passos daqueles que habitualmente as
atravessavam e que desapareceram. Alguma coisa continua a vibrar após sua
passagem, ondas cada vez mais fracas, mas que se podem captar, se estamos
atentos. No fundo, eu talvez nunca tivesse sido esse Pedro McEvoy, eu não era
nada, mas ondas me atravessavam, ora longínquas, ora mais fortes, e todos esses
ecos espalhados que flutuam no ar se cristalizavam e era eu”. De todos os livros
de Modiano que li, este é o que me causou maior impressão e que me fez refletir
muito mais. É uma soberba obra-prima!!!!
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