Apaixonante idealização
feminina
Pedro
J. Bondaczuk
A quarta das mulheres
criadas por Jorge Luís Borges, das cinco que considero inesquecíveis, é a
norueguesa Ulrica, personagem do conto do mesmo nome do volume “O livro de
areia”, publicado, em espanhol, em 1975. Não sei se essa obra foi traduzida
para o português e lançada no Brasil. Presumo que não. O exemplar que tenho em
mãos é da edição original. Esse conto tem (pelo menos para mim), valor não digo
maior, mas “diferente” dos outros tantos. Trata-se do único relato de amor (de
amor mesmo, nascido, consumado e até relatado) publicado por Borges. Porém...
tem final surpreendente!
Emma Zunz, por exemplo,
entregou-se a um marinheiro sueco, pois precisava perder a virgindade para
justificar seu álibi de ter sido estuprada por Loewenthal, a quem assassinou
para vingar a morte do pai. Não se tratou, pois, de relação de amor. Beatriz e
Teodelina são apresentadas já mortas e ambas nunca corresponderam à paixão mais
para platônica do que carnal dos respectivos personagens masculinos que as
amaram. Já com Ulrica o caso é diferente. Ou quase. Na epígrafe desse conto,
Borges cita versos do capítulo 27 da saga islandesa “Volsunga”, "Hann tekr
sverthit Gram okk / legger i methal theira bert", que significam:
"Ele tomou sua espada, Gram, e colocou o metal nu entre os dois”. A
citação não é gratuita. Tem papel muito importante no conto. Aliás, mais do que
isso. Teve importância imensa (por razões que só o escritor poderia explicar)
em sua vida. Tanto que foi reproduzida no verso da sua lápide no cemitério de
Genebra, onde seus restos mortais estão sepultados.
Estes versos fazem
referência ao herói Sigurd, que deveria partilhar seu leito com a bela
Brynhild, pretendida por seu cunhado. Para não tocá-la, e não macular sua
pureza, coloca a espada (cujo nome era Gram) entre ambos. Na saga islandesa,
anos depois, Brynhild causa a morte de Sigurd e depois se suicida, para que os
restos mortais de ambos ocupem a mesma pira funerária, um ao lado do outro, mas
com a tal espada nua separando os dois corpos. O conto “Ulrica” fala do
encontro do narrador, que também é o protagonista da história, o colombiano
Javier Otárola, professor da universidade dos Andes, em Bogotá, com a mulher
que considera ideal.
O conto começa assim (a
tradução é minha): “Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha
lembrança pessoal da realidade, o que dá no mesmo. Os fatos ocorreram há muito
pouco, mas sei que o hábito literário é o de intercalar fatos circunstanciais e
acentuar ênfases. Quero narrar meu encontro com Ulrica (não soube do seu
sobrenome e talvez não saberei nunca) na cidade de York. A crônica abarcará uma
noite e uma manhã. Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às
Cinco Irmãs de York, esses vitrais puros de toda a imagem, respeitados pelos
iconoclastas de Cromwell, mas o fato é que nos conhecemos na salinha do
Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava
de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida, que recusou. “Sou feminista” – disse
– “não quero copiar os homens. Desagradam-me seu fumo e seu álcool”. Em resumo,
neste encontro, os protagonistas se apaixonaram e se apelidaram com os nomes dos
heróis da saga islandesa da epigrafe: Brynhild e Sigurd.
O narrador descreve
assim (com a visão de alguém apaixonado) sua musa: “Um verso de William Blake
fala de mulheres de suave prata e de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro
e a suavidade. Era esbelta e alta, de traços afilados e olhos castanhos. Menos
que seu rosto, me impressionou seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente
e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de negro, o que é raro em terras do
Norte, cujos habitantes tratam de alegrar com cores o apagado do ambiente.
Falava em inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres”.
A conquista se deu sem
dramas. É narrada assim: “Compreendi que uma coisa inesperada não me estava
proibida e lhe beijei a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e em
seguida declarou: ‘Serei tua na posada de Thorgate. Peço-te, entretanto, que
não me toques. É melhor que assim seja’. A saga islandesa aparece como
subtexto. Javier e Ulrica se tratam por Sigurd e Brynhild. No começo da
narrativa, o apaixonado colombiano ouve “o uivo longínquo de um lobo”. Na saga,
para se matar Sigurd era necessário comer a carne desse animal, raro na
Inglaterra. Há referência à espada, que na lenda foi a defensora da castidade
de Brynhild.
A consumação física
desse amor, em suma, a “transa”, é descrita assim por Borges: “Do alto da
escada, Ulrica me gritou: ‘Ouviste o lobo? Já não restam lobos na Inglaterra.
Apressa-te’. Ao subir ao andar superior, notei que as paredes estavam
revestidas de papel à maneira de William Morris, de um vermelho carregado, com
detalhes de frutos e de pássaros. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era
baixo, com teto de duas águas. A esperada cama se duplicava num vago cristal e
a polida guarda me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já havia se despido.
Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier.Senti que a neve derretia. Já não
restavam móveis e nem espelhos. Não havia uma espada entre nós. Como a areia,
escoava-se o tempo. Secular na sombra, fluiu o amor e possuí, pela primeira e última
vez, a imagem de Ulrica”.
Fica implícito,
todavia, que todo o caso não passou de um sonho, de um delírio ou de uma
alucinação de Javier. Assim, não deixa de ser irônico o fato da única
personagem feminina de Jorge Luís Borges com um rosto, e que demonstra ter
sexualidade, nem mesmo existir. De não passar, apenas, de mera imagem
idealizada na mente do maduro professor colombiano, sequioso por viver seu
grande amor, de uma mulher ideal.
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