Livro que eu gostaria
de ter escrito
Pedro
J. Bondaczuk
“Número zero”, no
jargão jornalístico, é aquela edição de teste de um novo jornal, antes do seu
efetivo lançamento. Em boa parte dos casos, sua circulação é limitada ao âmbito
da própria empresa responsável pela publicação. Às vezes, esses exemplares são
encaminhados às agências de publicidade e a vários anunciantes potenciais para
facilitar a venda de espaços publicitários. Nele são testados o visual, com a
devida diagramação e as várias vinhetas, a linha editorial, a linguagem a ser
adotada e, enfim, tudo o mais que se pretende que seja o estilo do nascente
órgão de imprensa.
O “número zero” tende a
ser uma edição caprichada, por todos os motivos que se possa imaginar, e tem
tudo para de fato ser, até pelo tempo (que não se restringe a nenhum rígido e
implacável deadline) para ser editado e impresso. Possíveis erros são
cuidadosamente observados, para não ocorrerem quando o jornal estiver
efetivamente circulando. Métodos de redação, revisão e edição são testados e
aperfeiçoados e estabelecidos como normas. Enfim, esse número zero irá
determinar a cara e a “personalidade” da publicação que está nascendo.
Meus tantos amigos
jornalistas, que algum dia embarcaram nessa aventura – nem sempre bem sucedida
(diria que, na maioria, fracassada) – de criar algum órgão de imprensa, não
importa se jornal ou revista e nem sua periodicidade, sabem a que estou me
referindo. Já participei desse tipo de projeto, embora sem nunca liderá-lo e
muito menos bancá-lo, integrando equipes. A maioria teve curtíssima duração. Um
ou outro sobreviveu e existe até hoje. Bem, “número zero” é isso. E por que
estou trazendo esses detalhes à baila? Porque esse é o título, e o tema, do
novo romance do filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco, lançado no Brasil
pela Editora Record.
Adianto que é um livro
que eu gostaria de ter escrito, mas que nunca tive coragem. Tremi na base
somente ao pensar nos problemas que enfrentaria se me dispusesse a revelar tudo
o que sei a respeito do, digamos, “mau jornalismo”. Há cada podre de fazer
corar estátuas de pedra! Seu conjunto parece até delírio de uma mente doentia
quando relatado. Todavia... é tudo real. Mas... cadê coragem para enfrentar
pessoas poderosíssimas, com doutorado em todo o tipo de corrupção e sacanagem,
capazes de me destruir com um mero olhar ameaçador, como se de seus olhos
brotassem chispas de mortais raios laser? Não só eu, mas muitos outros amigos
jornalistas já me confidenciaram que gostariam de escrever um livro nessa
linha. Mas... como eu, não ousam nem pensar duas vezes nisso. É um assunto
tabu. Não, todavia, para Umberto Eco (aproveito para observar que em textos
anteriores, grafei o nome desse autor com “H” no início, mas o correto é sem
essa letra. Força do hábito).
O “Número Zero”, do
romance em questão, é a edição teste do novo jornal, chamado de “Amanhã”,
projetado para circular em Milão, no norte da Itália. Todavia, destinava-se a
fazer não um jornalismo legítimo, o ideal e limpo, mas estava sendo criado para
desinformar, difamar adversários, chantagear, elaborar dossiês e documentos
secretos e, sobretudo, manipular autoridades e leitores. Existem jornais assim?
Infelizmente, sim!!! E muitos!! Tanto
que Eco se inspirou em personagem real da vida italiana para criar o
protagonista central. Caricaturou Carmine Pecorelli, que editava um boletim de
notícias que era enviado a um público seleto de poderosos, acenando com a
divulgação de notícias constrangedoras caso não se submetessem às suas
chantagens. Nesse caso, esse cidadão teve fim trágico (posto que previsível):
foi assassinado.
A história se passa no
ano de 1992. Umberto Eco explicou por que: "Elegi 1992 para situar o livro
porque nesse momento houve esperança, nasceu a operação 'Mãos Limpas' e parecia
que tudo mudaria, havia a luta contra a corrupção, mas chegou Berlusconi e as
coisas aconteceram exatamente ao contrário". Toda a trama começa quando um
jornalista fracassado, Colonna, é contratado por Simei para ser editor-chefe de
um jornal que não existe (e que nunca existirá). Os demais integrantes da
equipe são levados a crer que estão se preparando para o lançamento do
“Amanhã”. Estabelecem estratégias jornalísticas, criam as seções e até definem
pautas. Todavia, a verdadeira missão de Colonna não é comandar um jornal. É
escrever um livro sobre essa experiência. A tal redação, onde está sendo
preparado o “número zero”, é um retrato escrachado do mau jornalismo: o venal,
mentiroso e canalha (que, infelizmente, existe, e em vários lugares do mundo).
Nas reuniões da equipe
vêm à tona coisas como “criar uma notícia, conduzir (e induzir) os leitores,
manipular a opinião pública escolhendo só versões convenientes e ocultando as
demais” e vai por aí afora. Não lhe parece, caríssimo leitor, algo sumamente
familiar? Deixo a pergunta no ar. Óbvio que não farei, que sequer insinuarei, a
sinopse do romance. Quem quiser conhecer o enredo, que compre o livro.
Limito-me a registrar a impressão que “Número Zero”, de Umberto Eco, me causou.
A mim ficou claro que a
intenção do autor não foi somente a de criticar, com fina ironia e ate de forma
um tanto cínica e exagerada, a imprensa sensacionalista e canalha. Critica,
também, o Estado ladrão e incompetente que, de uma maneira ou outra, propicia a
existência e a prosperidade desses arremedos de jornais. E condena nas
entrelinhas, sobretudo, a indigência mental e moral da sociedade, que mostra
suposta indignação contra a corrupção, de forma tão exagerada que denuncia se
tratar de farsa, mas que é corrupta até a medula (e sabe disso, embora negue
enfurecida, assumindo postura moralista mais falsa do que cédula de três
reais).
Li, nos últimos dias,
dezenas de críticas ao romance de Umberto Eco, que vão de um extremo ao outro,
tão díspares que nem parecem se referir ao mesmo livro. Vão desde elogios
rasgados tratando o romance como o suprassumo da perfeição à mais acerba
condenação, como se nada no livro prestasse. Não me surpreendo com essa
variedade. Aliás, gosto dela, de opiniões tão heterogêneas e divergentes que,
se às vezes me confundem, com um pouquinho de concentração me permitem fazer a
própria avaliação, com o máximo cuidado, sem afoiteza e sem deixar escapar
notórios méritos e possíveis deméritos. Só posso dizer uma coisa, com plena
convicção, sem margem sequer para arrependimento: “Número Zero” é um livro que
eu gostaria de ter escrito, caso tivesse a coragem, o preparo e, claro, a
competência de Umberto Eco. Mais não direi...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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