Os apuros de um agente
duplo
Pedro
J. Bondaczuk
“A ronda da noite” é o
segundo “pequeno-grande” livro de Patrick Modiano que acabo de ler e sobre o
qual me proponho a tecer alguns comentários, nessa “overdose” literária que
imponho, enfocando o estilo e a obra do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura
de 2014. Esclareço que o qualificativo “pequeno” está longe de ser, no caso,
depreciativo. Refere-se, somente, à extensão desse volume, de apenas 128
espicaçantes e atrativas páginas, um primor de escrita sintética e econômica.
Já o “grande” pode (e deve) ser aplicado à genialidade com que esse escritor
explora um tema tão complicado, como o que explorou. Põe complicação nisso!!!!
“A ronda da noite”, que
a editora Rocco publicou nos anos 80 do século passado, quando Modiano era
praticamente desconhecido até mesmo na França, foi relançado, recentemente, por
ela, em uma edição primorosa, caprichada, muito bem cuidada e atrativa. Foi,
todavia, apenas o segundo livro da carreira do escritor, lançado na França em
1969. Fez parte da chamada “Trilogia da Ocupação”, cujo primeiro volume foi seu
romance de estréia, “La Place de l’Étoile”(1968) e complementada por “Les
boulevards de ceinture” (1972). Ganha,
pois, maior importância, porquanto o leitor poderá notar, comparando com sua
produção posterior, sobretudo a mais recente, a coerência de Modiano no trato
de um mesmíssimo tema, e com estilo que ainda pouco mudou (ou não mudou coisa
alguma), sem se mostrar, em momento algum, repetitivo e nem óbvio.
O enredo de “A ronda da
noite” se passa numa França ocupada (como a imensa maioria de suas narrativas)
durante a Segunda Guerra Mundial. A história é contada por um jovem narrador
anônimo, que conta como era sua vida de agente duplo. Imaginem o que era na
época um francês ser, simultaneamente, informante da Gestapo, a cruel e
perversa polícia alemã, e da Resistência, grupo que arriscava a vida para
libertar o país e que, obviamente, não admitia traidores! Na vida real,
geralmente por razões de tentar preservar a vida, houve várias pessoas que
trabalharam para os invasores, denunciando, em alguns casos, até parentes, para
livrarem a própria pele. Quando descobertos pelos resistentes, óbvio, eram
mortos sem a menor piedade. Vários agentes franceses da Gestapo foram julgados
por traição, após a libertação da França em 1944, condenados pelos tribunais e,
em seguida, executados por pelotões de fuzilamento.
Houve, por outro lado,
muitos que prestaram inestimáveis serviços à Resistência, fornecendo
informações preciosas sobre posições militares nazistas, posteriormente
atacadas e destruídas pelos patriotas. Quando descobertos... obviamente eram,
executados pela Gestapo. E muitos e muitos o foram. Imaginem, pois, os riscos
de um agente duplo, em permanente corda-bamba, podendo ser descoberto a
qualquer momento, por um ou por outro lado, e imediatamente eliminado!
É o caso do personagem
central de “A ronda da noite”, o tal narrador anônimo, criado por Modiano. Esse
agente duplo sente-se encurralado pela encrenca em que ele próprio se meteu e
da qual não sabia como se safar. Como
francês, sentia-se culpado por trair a pátria, embora encontrasse (ou buscasse
encontrar) justificativas para o que fazia. Era, porém, tentativa vã de
justificar o injustificável para aplacar a consciência.
O agente duplo
justificava, mas para si mesmo, que estava arriscando a vida não propriamente
em proveito próprio, por medo ou por covardia, mas para proteger duas pessoas,
no caso Coco Lacour e Esmeralda. No fundo da mente, porém, sabia que isso não
explicava e muito menos justificava a traição. Ao longo da narrativa, Modiano
nos apresenta personagens (um tanto caricaturados) de franceses que não estavam
nem aí para o sofrimento e a humilhação da população, dos seus conterrâneos e
até mesmo de seus parentes. Queriam somente gozar a vida o quanto pudessem,
indiferentes à situação política da França. São os casos, entre outros, do
senhor Philibert, de Khédive, de Méthode e de outros tantos personagens, que
buscavam comer e beber do bom e do melhor, indiferentes a quanto isso custava.
Promoviam orgias fenomenais, dessas de fazer inveja aos adoradores de Baco,
enquanto o país definhava e quase agonizava.
A história de Modiano
baseia-se no caso real dos colaboracionistas Henri Lafont e Pierre Bonny. Ambos
não escaparam impunes da traição que cometeram. Foram denunciados, após a
libertação da França, julgados, condenados e fuzilados em dezembro de 1944. O
ganhador do Nobel de Literatura de 2014, todavia, traz temas tão penosos aos
franceses não por espírito revanchista, para exigir punição de infratores que
tenham escapado impunes, como possa parecer. É mais uma tentativa que faz de entender
o que motivou as pessoas a agirem como agiram para, se possível, perdoá-las e,
para só então, poder esquecer de vez aquele tão dramático (e para muitos,
vergonhoso) período. Pelo menos esta é a impressão que me fica dos seus livros.
É como Modiano escreveu sobre um de seus personagens: “É o seu jeito de lutar
contra a indiferença e o anonimato das grandes cidades, e também contra as
incertezas da vida”. Trazer o passado à tona é a maneira, do ganhador do Nobel
de Literatura de 2014, de lutar contra a indiferença e contra as incertezas da
vida.
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