Como um rio
Pedro
J. Bondaczuk
O teólogo e educador
canadense, Paul-Eugene Charboneau, em felicíssima metáfora, comparou o tempo a
um rio, em que passado, presente e futuro se misturam, tamanha sua velocidade,
e cujas águas correm somente em uma direção, em seu fluxo contínuo e inexorável
rumo ao mar. Não flui, óbvio, em sentido contrário, do oceano na direção da
nascente, o que contrariaria as leis da física. Essa citação gerou-me inúmeras
reflexões. Volta e meia detenho-me sobre ela.
Tratei desse tema, uma
das minhas obsessões, de diversas formas: em crônicas, poemas, contos e num ou
outro ensaio um tanto mais extenso. É certo que, como afirmou Jorge Luís
Borges, o tempo nem mesmo “existe”, como algo concreto, visível e palpável.
“Não passa de convenção”. Mas convencionais são tantas e tantas coisas em nossa
vida, desde a língua que falamos à linguagem escrita, com seus tantos e
variados alfabetos e vai por aí afora. Estão, neste mesmo balaio, a música, a
matemática, as artes, as denominações de tudo o que há, vivos ou materiais
etc.etc.etc. Tudo isso baseia-se em convenções. Ou não?!
“Colhi” essa metáfora,
essa delicada flor de sensibilidade e beleza de Eugene Charboneau em artigo que
o mestre publicou no jornal “Folha de S. Paulo” em 31 de dezembro de 1986. Foi
oportuníssima mensagem de fim de ano, no exato momento em que mais um deles acabava.
O que me chamou a atenção em especial, nessa brilhante explanação, foi sua
parte final, em forma de poema. Não consegui, por mais que tenha tentado,
descobrir seu título (se é que Charboneau o intitulou). O educador expressou-se
assim sobre o tema em questão:
"Passado...Presente...Futuro...
Todos
os três
formam
apenas um rio.
Quem
é que te engana?
O
grande enganador: o tempo.
No
tempo não há lugar
para
o homem.
Nele
ele está deslocado.
Um
passo... a corrente o apanha.
A
corrente do tempo.
Que
diferença
entre
olhar o rio
ou
estar dentro dele.
O
homem também é dono do rio".
Eu aduziria: mesmo
sendo proprietário do rio, o homem é sua vítima. Por mais que tente, não tem
como apenas “olhá-lo”. Está inexoravelmente “dentro dele”, de corpo e alma. É
criado e consumido por ele. A esse
propósito, a poetisa portuguesa, Florbela Espanca escreveu (em carta a um
amigo, que consta de seu livro “Correspondência”): “Lembra-te que o tempo tudo
consome. E se assim não fosse, o que seria a nossa vida!? Um ermo cemitério em
que cada cruz representaria um morto sempre vivo! Completamente impossível! Se
o tempo consome o corpo dos que morrem, como não consumir a lembrança deles? E
se assim não fosse, que vida seria a nossa!? Deus, dando-nos a dor, deu-nos
também o esquecimento...”
O eminente sacerdote
católico, que dedicou os últimos 27 anos da sua vida (de 1959, quando veio ao
Brasil, até 11 de setembro de 1987, quando morreu) ao magistério, sobretudo do
Colégio Santa Cruz, de São Paulo (onde foi vice-diretor), tinha, como pano de
fundo dos seus ensinamentos, como roteiro, como princípio filosófico, a relação
direta entre conhecimento e ação. Essa, aliás, é uma filosofia que adoto (ou
pelo menos tento adotar) em minha vida, mesmo não tendo o privilégio de
conviver com Charboneau e sequer conhecê-lo pessoalmente. Conversei com alguns
de seus alunos, que deram testemunho do quanto suas lições foram preciosas.
Pudera! Se não fui seu aluno (o que lamento), porém, fui, pelo menos, seu
assíduo e fiel leitor. “Devorei” vários artigos que publicou na “Folha de S.
Paulo”. Mais que isso, colecionei-os, obsessivamente, em minha hemeroteca.
Charboneau pregava uma
visão total do ser humano, tanto a física quanto a espiritual, ligando corpo e
alma em uma indissociável unidade. Foi um sábio a semear sabedoria. Sorte de
quem teve o privilégio de assimilar seus ensinamentos. Ainda sobre o tempo, o
poeta e crítico francês, Nicolas Boileau-Despréaux, escreveu: “O tempo, que
tudo transforma, transforma também o nosso temperamento. Cada idade tem os seus
prazeres, o seu espírito e os seus hábitos”. Afinal, estamos no interior desse
rio e não, apenas, olhando-o. E suas águas fluem sem cessar, misturando nosso
passado e nosso presente, conduzindo-os rumo ao futuro, onde, infelizmente,
está nossa extinção. É, ao fim e ao cabo, como afirmou Machado de Assis, nesta
pertinente metáfora, “um químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e
transforma todas as substâncias morais”. E tudo o que há e que venha a haver.
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