Saturday, June 01, 2013

Vulto da nacionalidade

Pedro J. Bondaczuk

A influência dos jesuítas na constituição da cultura brasileira e da organização política, social, artística e, sobretudo religiosa do Brasil foi das mais relevantes e decisivas. O País foi, por pelo menos dois séculos – até que o Marquês de Pombal determinasse sua expulsão – terreno fértil de testes para as teorias de evangelização da ordem fundada por Inácio de Loyola. Foi uma espécie de campo de treinamento para seus sacerdotes mais jovens, posto que mais dinâmicos e atuantes. Mas foi, sobretudo, a “mina de ouro”, que abarrotou os cofres da Companhia de Jesus de imensa riqueza, extraída do solo generoso deste paraíso tropical.

Entre tantos jesuítas que atuaram no Brasil colonial destaca-se, e por vários motivos, o padre José de Anchieta, um dos principais vultos da nacionalidade brasileira. Seu campo de atuação foi dos mais variados, mas pode, grosso modo, ser dividido, para efeitos didáticos, em quatro principais vertentes. A primeira (e óbvia) é a religiosa (já que se tratava de um padre). Nesse aspecto, foi relevante sua ação catequizadora dos indígenas e dos judeus convertidos da colônia, mantendo viva, nos ermos daquele território imenso, inóspito e pouco povoado, a fé católica.

A segunda vertente da atuação de Anchieta no Brasil foi a política. Homem dinâmico e realizador, com aguçada visão de futuro, esse jesuíta participou, direta ou indiretamente, da fundação de três cidades, duas das quais – São Paulo e Rio de Janeiro – situam-se, hoje, entre as mais populosas e importantes das três Américas e, por que não, do Planeta.

O terceiro setor em que Anchieta atuou foi o  humanístico. Fez as vezes, quando se tornou necessário, de uma espécie de “médico”, curando, mediante conhecimentos de Medicina (posto que elementares, mas nem por isso menos importantes) que trouxe dos centros mais avançados da Europa (em alguns casos) várias doenças trazidas para cá, de Europa, pelos colonizadores. Não raro, todavia, viu-se forçado a recorrer a medicamentos locais, rústicos, mas que se revelaram altamente eficazes, como as ervas conhecidas pelos indígenas, para debelar moléstias cuja cura estivesse a seu alcance.

Não menos relevante foi sua atuação como sanitarista, transmitindo conceitos básicos de higiene à população dos núcleos coloniais em que atuou, numa ação preventiva, evitando dessa forma epidemias que certamente seriam fatais e dizimariam populações inteiras caso ocorressem. Além disso, instruiu os colonos a construírem moradias mais salubres e apropriadas  ao úmido clima tropical. E atuou, até mesmo, como nutricionista, contribuindo para a formação de hábitos alimentares saudáveis nestes rincões tropicais.

O quarto campo de atuação de Anchieta no Brasil, finalmente, foi o que lhe exigiu mais esforço, mas foi, no meu entender, o que ele se deu melhor. Refiro-me ao o da Educação e da Cultura. O sacerdote jesuíta foi mestre por excelência, lecionando, nos sertões brasileiros, o que havia de mais avançado em termos de ciências humanas, transmitindo os mesmos conhecimentos que eram ensinados então nas mais requisitadas e famosas universidades européias. Utilizou, para isso, métodos didáticos que ele próprio desenvolveu ou adaptou, para se tornar entendido e ensinar com eficiência as lições que se propunha a transmitir. Escreveu, até, uma gramática de língua local, a falada pelos índios, para “disciplinar” e organizar esse idioma autóctone.

Ademais, José de Anchieta foi refinado poeta, compondo poemas profundamente místicos, embriões do que viria a ser no futuro a riquíssima e original Literatura Brasileira. Manteve intensa correspondência com os superiores da ordem, mediante cartas e relatórios detalhados e precisos, que hoje se constituem em valiosos documentos para a reconstituição histórica daquele período da vida do nosso País. Outro feito pioneiro desse dinâmico sacerdote foi a introdução do teatro na colônia, mas com função estritamente didática, como, aliás, previa uma das normas da Companhia de Jesus.

O pedido, para a beatificação de José de Anchieta, arrastou-se por quase quatro séculos no Vaticano, dadas, principalmente, as dificuldades de se distinguir os fatos reais da sua vida da lenda que se criou em torno da sua figura. Foi feito, pela Companhia de Jesus, em 1617, apenas vinte anos após a morte do sacerdote (ocorrida em 1597, aos 64 anos de idade, ou aos 63 de acordo com alguns historiadores). Sua causa foi aceita pelo papa Urbano VIII sete anos depois, em 1624, sendo entregue ao “advogado do diabo” para que a contestasse, conforme exigência do Direito Canônico. Inexplicavelmente, o processo parou e ficou esquecido por 273 anos.

Em 1897, todavia, quando das “Conferências Anchietanas”, a campanha para que fosse beatificado, que havia esfriado por quase três séculos, recrudesceu, graças ao movimento encabeçado por Eduardo Prado e endossado pelas ilustres figuras de Brasílio Machado, Teodoro Sampaio e do Padre Chico. Mas o resultado desse empenho só ocorreu em 1980, quando o papa João Paulo II determinou sua beatificação.

Abstraindo essa questão da “santidade” ou não de Anchieta – que é bastante polêmica, sobretudo aos que não professam a fé católica – uma coisa nem o mais cético dos céticos (desde que culto e bem informado), não pode negar: a importância da maiúscula figura de José de Anchieta, para a formação da nacionalidade brasileira, processo que, na minha visão, ainda está em pleno desenvolvimento. Não por acaso, esse jesuíta, natural das Ilhas Canárias, ostenta o merecido título de “Apóstolo do Brasil”.


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