Sunday, June 30, 2013

Carisma de Alfonsin

Pedro J. Bondaczuk

O partido de governo na Argentina, a União Cívica Radical, já está se movimentando intensamente, de olho na sucessão do presidente Raul Alfonsin. Esse movimento é muito prematuro, poderia afirmar o leitor, sabendo que o dirigente mal atingiu a metade do seu mandato.

Ocorre que aquilo que a UCR deseja é a permanência do seu líder no governo. E, para isso, já está traçando uma bem-orquestrada estratégia, cujo ponto inicial é tentar alterar a Constituição, para permitir que seja inserido um dispositivo que garanta a reeleição de Alfonsin.

Como em outras ocasiões, em que a tentativa foi ensaiada, desta, também, ela vem encontrando sérias resistências. Por melhor que seja o atual presidente – raciocinam os argentinos – um novo mandato pode fazer com que a possibilidade lhe suba à cabeça. Afinal, a prática já demonstrou, o poder tende a corromper até as lideranças melhor-intencionadas.

Mas os radicais, prevendo o insucesso dessa alteração constitucional, ensaiam uma outra, muito mais viável e que teria efeitos idênticos. Propõem-se a mudar o próprio regime argentino, instituindo o parlamentarismo.

Essa tese, ao contrário da anterior, encontra mais respaldo na sociedade local. E, caso vingue, nada impede que o atual presidente, que conseguiu um grande feito quando derrotou o peronismo nas eleições de 1983, surpreendendo muita gente, dentro e fora da Argentina, venha a ocupar a chefia de gabinete. Afinal, seu partido mostrou toda a sua força na votação de novembro do ano passado. E Alfonsin provou ter carisma, pois não é qualquer presidente que, poucos dias depois de decretar estado de sítio num país, consegue levar sua agremiação a uma consagradora vitória nas urnas, sem se valer do recurso da coação, que uma medida dessa natureza lhe possibilitaria.

Agora, o governo argentino já fala numa Nova República. Ou seja, pretende chegar a objetivos idênticos aos nossos, no Brasil, por caminhos diferentes. Enquanto aqui, as indispensáveis mudanças requeridas por nossa sociedade foram a própria bandeira da campanha que nos conduziu a um retorno pacífico à democracia, no nosso vizinho, essa não foi a principal motivação. E nem o tema principal da campanha presidencial de 1983 teve por foco alterações tão radicais.

A população argentina queria, acima de tudo, que se esclarecesse a questão dos “desaparecidos”, ou seja, os milhares de cidadãos colhidos nas redes da chamada guerra suja do antigo regime militar contra a guerrilha urbana. Desejava restabelecer-se do trauma deixado pela aventura das Malvinas, que neste mês completou o quarto aniversário do seu início. E exigia, acima de tudo, que a economia nacional fosse reorganizada, após um razoável período de orgia de gastos improdutivos, feitos com dinheiro alheio, que até hoje o país não sabe como pagar.

Tudo o que Alfonsin se propôs a fazer, cumpriu, nessa primeira fase do seu mandato. Agora, com a Argentina razoavelmente pacificada, com sua economia pelo menos livre da voracidade da hiperinflação (embora restando ainda muitos retoques a serem feitos no Plano Austral, que corrijam injustiças sociais) e com os responsáveis pelo maior genocídio ocorrido na América Latina devidamente julgados, e punidos, pela Justiça, o presidente já sonha com um passo além.

Arquiteta a adoção de medidas que protejam o Estado argentino de novos aventureiros e de novas aventuras. Planeja tornar as instituições sólidas, a salvo de riscos iminentes (se bem que é impossível assegurar a segurança absoluta, nesse aspecto, em qualquer país do mundo) e que coloque essa sociedade nacional, nesse mister, ao lado daquelas mais desenvolvidas, em que a democracia seja indestrutível tradição.

De qualquer maneira, mesmo que seus próximos dois anos e meio de mandato forem desastrosos e que seu partido não seja reconduzido ao poder em 1989, apenas por aquilo que fez, Raul Alfonsin já merece figurar na história latino-americana como um dos arquitetos de uma nova América. Ou seja, como artífice de uma sociedade supranacional, com mentalidade bem diversa do que a que predominou nos últimos anos: prudente, sem ser tímida; ousada, sem ser temerária e em que o sentido de comunidade prevaleça sobre interesses menores.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 23 de abril de 1986).


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