Carisma
de Alfonsin
Pedro J. Bondaczuk
O partido de governo na
Argentina, a União Cívica Radical, já está se movimentando intensamente, de
olho na sucessão do presidente Raul Alfonsin. Esse movimento é muito prematuro,
poderia afirmar o leitor, sabendo que o dirigente mal atingiu a metade do seu
mandato.
Ocorre que aquilo que a UCR
deseja é a permanência do seu líder no governo. E, para isso, já está traçando
uma bem-orquestrada estratégia, cujo ponto inicial é tentar alterar a
Constituição, para permitir que seja inserido um dispositivo que garanta a
reeleição de Alfonsin.
Como em outras ocasiões, em que a
tentativa foi ensaiada, desta, também, ela vem encontrando sérias resistências.
Por melhor que seja o atual presidente – raciocinam os argentinos – um novo
mandato pode fazer com que a possibilidade lhe suba à cabeça. Afinal, a prática
já demonstrou, o poder tende a corromper até as lideranças
melhor-intencionadas.
Mas os radicais, prevendo o
insucesso dessa alteração constitucional, ensaiam uma outra, muito mais viável
e que teria efeitos idênticos. Propõem-se a mudar o próprio regime argentino,
instituindo o parlamentarismo.
Essa tese, ao contrário da anterior, encontra mais respaldo na sociedade local. E, caso vingue, nada impede que o atual presidente, que conseguiu um grande feito quando derrotou o peronismo nas eleições de 1983, surpreendendo muita gente, dentro e fora da Argentina, venha a ocupar a chefia de gabinete. Afinal, seu partido mostrou toda a sua força na votação de novembro do ano passado. E Alfonsin provou ter carisma, pois não é qualquer presidente que, poucos dias depois de decretar estado de sítio num país, consegue levar sua agremiação a uma consagradora vitória nas urnas, sem se valer do recurso da coação, que uma medida dessa natureza lhe possibilitaria.
Agora, o governo argentino já
fala numa Nova República. Ou seja, pretende chegar a objetivos idênticos aos
nossos, no Brasil, por caminhos diferentes. Enquanto aqui, as indispensáveis
mudanças requeridas por nossa sociedade foram a própria bandeira da campanha
que nos conduziu a um retorno pacífico à democracia, no nosso vizinho, essa não
foi a principal motivação. E nem o tema principal da campanha presidencial de
1983 teve por foco alterações tão radicais.
A população argentina queria,
acima de tudo, que se esclarecesse a questão dos “desaparecidos”, ou seja, os
milhares de cidadãos colhidos nas redes da chamada guerra suja do antigo regime
militar contra a guerrilha urbana. Desejava restabelecer-se do trauma deixado
pela aventura das Malvinas, que neste mês completou o quarto aniversário do seu
início. E exigia, acima de tudo, que a economia nacional fosse reorganizada,
após um razoável período de orgia de gastos improdutivos, feitos com dinheiro
alheio, que até hoje o país não sabe como pagar.
Tudo o que Alfonsin se propôs a
fazer, cumpriu, nessa primeira fase do seu mandato. Agora, com a Argentina
razoavelmente pacificada, com sua economia pelo menos livre da voracidade da
hiperinflação (embora restando ainda muitos retoques a serem feitos no Plano
Austral, que corrijam injustiças sociais) e com os responsáveis pelo maior
genocídio ocorrido na América Latina devidamente julgados, e punidos, pela
Justiça, o presidente já sonha com um passo além.
Arquiteta a adoção de medidas que
protejam o Estado argentino de novos aventureiros e de novas aventuras. Planeja
tornar as instituições sólidas, a salvo de riscos iminentes (se bem que é
impossível assegurar a segurança absoluta, nesse aspecto, em qualquer país do
mundo) e que coloque essa sociedade nacional, nesse mister, ao lado daquelas
mais desenvolvidas, em que a democracia seja indestrutível tradição.
De qualquer maneira, mesmo que
seus próximos dois anos e meio de mandato forem desastrosos e que seu partido
não seja reconduzido ao poder em 1989, apenas por aquilo que fez, Raul Alfonsin
já merece figurar na história latino-americana como um dos arquitetos de uma
nova América. Ou seja, como artífice de uma sociedade supranacional, com
mentalidade bem diversa do que a que predominou nos últimos anos: prudente, sem
ser tímida; ousada, sem ser temerária e em que o sentido de comunidade
prevaleça sobre interesses menores.
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em
23 de abril de 1986).
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