Anchieta e o Rio de
Janeiro
Pedro
J. Bondaczuk
O padre José de
Anchieta deu importante contribuição para se criarem as condições propícias
para a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1° de março de
1565. A exemplo do que ocorre com São Paulo, todavia, raros historiadores admitem a importância da
suas ações (sobretudo a diplomática) para que isso se tornasse possível.
Em 12 de julho de 1565,
o almirante francês Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta,
patrocinado pelo rei Henrique II, zarpou da França, no comando de uma armada,
com destino ao Brasil. No dia 10 de novembro do mesmo ano, sua esquadra aportou
na Ilha de Sergipe – que hoje tem o seu nome – na Baía de Guanabara. O ilustre
navegador chegava aos trópicos com um sonho na cabeça: estabelecer a “França
Antártica” no recém descoberto Novo Mundo, cuja extensão e riquezas despertavam
a cobiça das potências européias de então.
A colônia que pretendia
criar deveria ter características protestantes (mais especificamente,
calvinistas) numa época em que as guerras religiosas pipocavam por toda a
Europa. Villegagnon tinha em mente repetir o que peregrinos ingleses haviam
feito na América do Norte. A partir da chegada do almirante francês, começaria,
para os portugueses, um período de grandes dificuldades, que se estenderia por
pelo menos uma década, marcado por ferozes batalhas, que culminariam com a
expulsão dos franceses e a posterior fundação da cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro.
É desnecessário o
relato desses dez anos de sacrifícios, tragédias, vitórias, derrotas, sonhos
frustrados, mortes e destruição e tudo o mais que de ruim qualquer guerra traz
em seu perverso caudal. Deixo a tarefa para historiadores de ofício. Peço
licença, porém, para reproduzir alguns trechos do livro de Eduardo Tourinho,
“Revelação do Rio de Janeiro” – Editora Civilização Brasileira, 1ª edição,
exemplar 862, edição comemorativa do IV centenário do Rio de Janeiro – que
resume com perícia alguns daqueles acontecimentos. O escritor relata, em
determinada parte da sua obra: “Entre 1561 e 62, refizeram-se os franceses no
Rio de Janeiro. Unidos ao silvícola, continuaram a assegurar aos armadores da
Bretanha e da Normandia o escambo das utilidades...”
E o historiador prossegue,
destacando a atuação dos indígenas da região em conflito: “(...) Fortes e
aguerridos, os tamoios dominavam o Vale do Paraíba e de Cabo Frio a Bertioga,
patrulhavam a costa (...) Amadurecera Nóbrega um plana para a pacificação
desses bárbaros. A 21 de março de 1563, seguiu para Iperoig (Iperoi, Iperoyg,
rio do Tubarão) nas proximidades da atual Ubatuba. Anchieta acompanhou-o...”
E aqui começa a
participação do jesuíta canarino. Tourinho prossegue em seu relato: “(...) Lá
chegando (Anchieta), peregrinou pelas tabas tupinambás e com os principais
Cunhambebe, Caoquira e Pindobuçu concertou pazes. Mas Aimberé e Guaxará –
chefes do gentio de Cabo Frio e do Rio de Janeiro – declararam-se contrários à
concórdia. A 21 de junho regressou Nóbrega a São Vicente e entre os tamoios
permaneceu Anchieta, até 14 de setembro...” Imaginem os riscos que o jesuíta
corria entre silvícolas hostis, obcecados pela expulsão dos portugueses, nos
quais viam o verdadeiro inimigo e não nos franceses, aos quais se aliaram!
Mas, deixemos Eduardo
Tourinho narrar mais um pouco desses dramáticos acontecimentos: “(...) Em fins
de 63 ou no começo do ano seguinte, no comando de pequena esquadra lusa, volta
Estácio de Sá à Baía de Todos os Santos (...) Acrescida de recursos,
despachou-a o governador geral para o Sul. Tocando no Espírito Santo, recolhe a
Belchior de Azevedo, e também a Ararigbóia e seus índios (,,,) Dessa forma,
somente a 22 de janeiro de 1565 pôde Estácio de Sá abrir velas de São Vicente
para a Guanabara. Em 27, em cinco navios pequenos e oito canoas, Anchieta e o
padre Gonçalo de Oliveira deixaram Bertioga. Com eles vieram mamelucos e índios
de Cananéia, temiminós do Espírito Santo, tupiniquins e cristãos de
Piratininga. Na carta de 9 de julho narra Anchieta a acidentada travessia
realizada...”
Eduardo Tourinho narra
da seguinte forma as batalhas decisivas que culminaram na expulsão dos
franceses: “(...) Os tamoios armavam ciladas e incitavam os recém-chegados a
combater no mar. A 6 de março, quatro canoas dos silvícolas abordaram a cerca e
carregaram um índio. Mas foram perseguidas e vencidas. Em 10, um navio francês
aparece no fundo da baía. No dia seguinte, ataca-o Estácio de Sá. Mal começa a
luta, quarenta e oito canoas tamoias investem contra a tranqueira da ‘Ponta da
Cara de Cão’, que é bravamente defendida. A nau de França, afinal, entrega a
artilharia e a pólvora e tem permissão
de continuar a viagem. A seu bordo, muitos franceses que estavam no Rio
seguiram também...”
Como se nota, pela
narrativa do historiador Eduardo Tourinho, Anchieta teve atuação decisiva nos
dois últimos anos de guerra com os invasores, que culminaram na fundação da
cidade do Rio de Janeiro. O jesuíta atuou tanto como diplomata – concertando
alianças com tribos amigas e pacificando os tamoios (aliados dos franceses na
chamada “Confederação dos Tamoios”) – quanto na condição de mentor espiritual
de soldados, colonos e indígenas. E mais, exerceu pequenas (mas indispensáveis)
tarefas civis, acompanhando os militares defensores da colônia, servindo de correio
e, sobretudo, levantando o moral das tropas, das quais era o capelão, o
confessor e o compreensivo amigo.
O fato é que José de
Anchieta esteve, praticamente o tempo todo, ao lado de Estácio de Sá e pode ser
considerado, sem nenhum exagero ou incorreção histórica, como um dos fundadores
do Rio de Janeiro. Seu espírito pioneiro como que farejava terreno fértil para
lançar as sementes do progresso. Todavia, o acadêmico de Coimbra sabia que só
seria possível estabelecer uma grande civilização naqueles trópicos selvagens
mediante a educação, a cultura e a arte. Já o apóstolo de Cristo que habitava
sua alma só pensava na catequese do gentio. Anchieta provou ser possível
exercer atividades civis, inclusive políticas, sem se perder a religiosidade.
O padre humilde, que
jamais empunhou outra “espada”, que não fosse a da razão; que nunca teve nas
mãos outra arma que não o Evangelho de Cristo, este despretensioso jesuíta, com
seu hábito remendado e de cor indefinida de tanto uso, de sandálias gastas de
tantas e longas caminhadas por picadas na mata virgem, de face macerada por
fome e privações, inscreveu-se de vez na história deste gigantesco País, que
lhe deve perpétuos tributo e reverência. E isso tanto por suas magníficas
obras, quanto por sua visão (até um tanto romântica) de futuro e pela confiança
e convicção de que tudo o que fazia era útil e bom. E eram, de fato.
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