Monday, June 03, 2013

Anchieta e o Rio de Janeiro

Pedro J. Bondaczuk

O padre José de Anchieta deu importante contribuição para se criarem as condições propícias para a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1° de março de 1565. A exemplo do que ocorre com São Paulo, todavia,  raros historiadores admitem a importância da suas ações (sobretudo a diplomática) para que isso se tornasse possível.

Em 12 de julho de 1565, o almirante francês Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta, patrocinado pelo rei Henrique II, zarpou da França, no comando de uma armada, com destino ao Brasil. No dia 10 de novembro do mesmo ano, sua esquadra aportou na Ilha de Sergipe – que hoje tem o seu nome – na Baía de Guanabara. O ilustre navegador chegava aos trópicos com um sonho na cabeça: estabelecer a “França Antártica” no recém descoberto Novo Mundo, cuja extensão e riquezas despertavam a cobiça das potências européias de então.

A colônia que pretendia criar deveria ter características protestantes (mais especificamente, calvinistas) numa época em que as guerras religiosas pipocavam por toda a Europa. Villegagnon tinha em mente repetir o que peregrinos ingleses haviam feito na América do Norte. A partir da chegada do almirante francês, começaria, para os portugueses, um período de grandes dificuldades, que se estenderia por pelo menos uma década, marcado por ferozes batalhas, que culminariam com a expulsão dos franceses e a posterior fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

É desnecessário o relato desses dez anos de sacrifícios, tragédias, vitórias, derrotas, sonhos frustrados, mortes e destruição e tudo o mais que de ruim qualquer guerra traz em seu perverso caudal. Deixo a tarefa para historiadores de ofício. Peço licença, porém, para reproduzir alguns trechos do livro de Eduardo Tourinho, “Revelação do Rio de Janeiro” – Editora Civilização Brasileira, 1ª edição, exemplar 862, edição comemorativa do IV centenário do Rio de Janeiro – que resume com perícia alguns daqueles acontecimentos. O escritor relata, em determinada parte da sua obra: “Entre 1561 e 62, refizeram-se os franceses no Rio de Janeiro. Unidos ao silvícola, continuaram a assegurar aos armadores da Bretanha e da Normandia o escambo das utilidades...”

E o historiador prossegue, destacando a atuação dos indígenas da região em conflito: “(...) Fortes e aguerridos, os tamoios dominavam o Vale do Paraíba e de Cabo Frio a Bertioga, patrulhavam a costa (...) Amadurecera Nóbrega um plana para a pacificação desses bárbaros. A 21 de março de 1563, seguiu para Iperoig (Iperoi, Iperoyg, rio do Tubarão) nas proximidades da atual Ubatuba. Anchieta acompanhou-o...”

E aqui começa a participação do jesuíta canarino. Tourinho prossegue em seu relato: “(...) Lá chegando (Anchieta), peregrinou pelas tabas tupinambás e com os principais Cunhambebe, Caoquira e Pindobuçu concertou pazes. Mas Aimberé e Guaxará – chefes do gentio de Cabo Frio e do Rio de Janeiro – declararam-se contrários à concórdia. A 21 de junho regressou Nóbrega a São Vicente e entre os tamoios permaneceu Anchieta, até 14 de setembro...” Imaginem os riscos que o jesuíta corria entre silvícolas hostis, obcecados pela expulsão dos portugueses, nos quais viam o verdadeiro inimigo e não nos franceses, aos quais se aliaram!

Mas, deixemos Eduardo Tourinho narrar mais um pouco desses dramáticos acontecimentos: “(...) Em fins de 63 ou no começo do ano seguinte, no comando de pequena esquadra lusa, volta Estácio de Sá à Baía de Todos os Santos (...) Acrescida de recursos, despachou-a o governador geral para o Sul. Tocando no Espírito Santo, recolhe a Belchior de Azevedo, e também a Ararigbóia e seus índios (,,,) Dessa forma, somente a 22 de janeiro de 1565 pôde Estácio de Sá abrir velas de São Vicente para a Guanabara. Em 27, em cinco navios pequenos e oito canoas, Anchieta e o padre Gonçalo de Oliveira deixaram Bertioga. Com eles vieram mamelucos e índios de Cananéia, temiminós do Espírito Santo, tupiniquins e cristãos de Piratininga. Na carta de 9 de julho narra Anchieta a acidentada travessia realizada...”

Eduardo Tourinho narra da seguinte forma as batalhas decisivas que culminaram na expulsão dos franceses: “(...) Os tamoios armavam ciladas e incitavam os recém-chegados a combater no mar. A 6 de março, quatro canoas dos silvícolas abordaram a cerca e carregaram um índio. Mas foram perseguidas e vencidas. Em 10, um navio francês aparece no fundo da baía. No dia seguinte, ataca-o Estácio de Sá. Mal começa a luta, quarenta e oito canoas tamoias investem contra a tranqueira da ‘Ponta da Cara de Cão’, que é bravamente defendida. A nau de França, afinal, entrega a artilharia  e a pólvora e tem permissão de continuar a viagem. A seu bordo, muitos franceses que estavam no Rio seguiram também...”

Como se nota, pela narrativa do historiador Eduardo Tourinho, Anchieta teve atuação decisiva nos dois últimos anos de guerra com os invasores, que culminaram na fundação da cidade do Rio de Janeiro. O jesuíta atuou tanto como diplomata – concertando alianças com tribos amigas e pacificando os tamoios (aliados dos franceses na chamada “Confederação dos Tamoios”) – quanto na condição de mentor espiritual de soldados, colonos e indígenas. E mais, exerceu pequenas (mas indispensáveis) tarefas civis, acompanhando os militares defensores da colônia, servindo de correio e, sobretudo, levantando o moral das tropas, das quais era o capelão, o confessor e o compreensivo amigo.

O fato é que José de Anchieta esteve, praticamente o tempo todo, ao lado de Estácio de Sá e pode ser considerado, sem nenhum exagero ou incorreção histórica, como um dos fundadores do Rio de Janeiro. Seu espírito pioneiro como que farejava terreno fértil para lançar as sementes do progresso. Todavia, o acadêmico de Coimbra sabia que só seria possível estabelecer uma grande civilização naqueles trópicos selvagens mediante a educação, a cultura e a arte. Já o apóstolo de Cristo que habitava sua alma só pensava na catequese do gentio. Anchieta provou ser possível exercer atividades civis, inclusive políticas, sem se perder a religiosidade.

O padre humilde, que jamais empunhou outra “espada”, que não fosse a da razão; que nunca teve nas mãos outra arma que não o Evangelho de Cristo, este despretensioso jesuíta, com seu hábito remendado e de cor indefinida de tanto uso, de sandálias gastas de tantas e longas caminhadas por picadas na mata virgem, de face macerada por fome e privações, inscreveu-se de vez na história deste gigantesco País, que lhe deve perpétuos tributo e reverência. E isso tanto por suas magníficas obras, quanto por sua visão (até um tanto romântica) de futuro e pela confiança e convicção de que tudo o que fazia era útil e bom. E eram, de fato.


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