Thursday, June 13, 2013

Miséria e ignorância

Pedro J. Bondaczuk

O que é pior para qualquer pessoa: ser miserável ou ignorante? Trata-se de opção sombria – e isso quando se pode optar –, mas que não é ainda o mais tenebroso dos mundos para tal indivíduo. Afinal, ele pode ostentar ambas condições, o que é o trágico dos trágicos. Aliás, boa parte dos miseráveis, mundo afora (possivelmente a maioria) está nessa situação em decorrência da ignorância. Suponhamos, porém, que haja a possibilidade de se fazer a opção.

Essa proposta “indecente” equivale a perguntar a alguém se quer morrer por facada ou por tiro. A menos que essa pessoa seja suicida compulsiva e esteja totalmente desesperançada e desencantada da vida, não escolherá nenhuma das duas (ou outra qualquer) formas de morte. Optará, lógico, por viver. No caso da miséria e da ignorância, nem se trata de questão de escolha. É conseqüência das circunstâncias e do acaso.

Tratar dessa insólita questão, todavia, não é nenhum rasgo de originalidade meu, posto que muitos, certamente, o considerem nada genial, mas tema de péssimo gosto. O assunto foi tratado por eminentes filósofos, e com a mesma colocação que fiz. Entre estes, estão os gregos Demócrito e Heráclito. Baseado nas considerações de ambos, o padre Antonio Vieira, um dos mais renomados oradores sacros perpetuados na história, teceu lúcidas reflexões, em um dos seus tantos memoráveis sermões. Em certo trecho de uma de suas homilias, o polêmico sacerdote afirmou: “Demócrito ria porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria”.

Já comentei essa citação em uma das tantas reflexões que partilhei com vocês, mas prometo não ser repetitivo, abordando a questão em contexto diverso do que abordei anteriormente, posto que complementar, até para manter coerência. Como se vê, Vieira sugere que, se alguém tiver que optar entre as duas aflitivas e indesejáveis condições, que opte pela primeira. Dava, pois, razão a Heráclito de chorar e não a Demócrito, de rir. Parece escolha sem sentido, mas se analisarmos as duas opções, veremos que há lógica na escolha.

A miséria, no caso, é a material, a ausência absoluta de bens, em que a pessoa é despojada a tal ponto, que depende de terceiros para sobreviver e que pode (embora seja raro e difícil) ser reparada, com súbita virada da sorte que proporcione ao miserável se tornar proprietário até de uma fortuna (mediante herança ou de outra forma qualquer). Não se trata, pois, de despojamento moral ou espiritual, estes sim irreparáveis. Já a ignorância a que os filósofos Demócrito e Heráclito (e Vieira) se referem não é o mero desconhecimento de determinada informação ou de certos conceitos, mas a irreparável, a de que os detentores não conseguem nunca se livrar, por sequer admitirem a condição de ignorantes e que, ao contrário, por agirem com soberba e arrogância, julgam-se conhecedores do que desconhecem. Essa é terrível e sumamente incômoda. Classifico-a de antônima de “gênio”. É exatamente, sem tirar e nem por, o seu oposto.

Em certo aspecto, somos, todos, sem exceção, moderadamente ignorantes (uns mais e outros menos, é certo). Se não, vejamos. O conhecimento, desde que o homem primitivo tomou consciência de si e do universo que o rodeia, se expandiu, de tal sorte, que é impossível a qualquer pessoa, por mais genial e bem-dotada que seja, saber de tudo o que há. História, ciências, artes, tecnologia etc., estão em permanente expansão. E, cada uma dessas disciplinas, exige especialização. Ainda assim, mesmo os especialistas de cada uma dessas áreas, não conseguem apreender sequer ínfima parcela do conhecimento delas.

Gostemos ou não, admitamos ou não, somos, portanto, em alguma medida, todos “ignorantes” de alguns assuntos. Não há demérito em admitir isso. Mas não é a esse tipo de ignorância que Demócrito, Heráclito, Vieira e eu nos referimos. É ao referido pelo filósofo e matemático britânico do século XIX, Alfred North Whitehead: “O túmulo do saber não é a ignorância, mas a ignorância da ignorância”. Ou seja, é não se saber que se é ignorante. Esta condição, sim, deve nos preocupar e devemos evitar. Pois é, justamente, no pleno conhecimento das nossas limitações mentais, e no nosso esforço para supri-las, que reside o princípio da sabedoria que nos compete buscar. 

Ninguém gosta da miséria, óbvio, nem o mais despojado dos ermitões, apesar que muitos a citem como virtude. Não vejo nada de virtuoso nela. Embora a riqueza não seja o valor que me mova, nada tenho, pessoalmente, contra ela. Nem contra os ricos. O que condeno neles são os comportamentos que, via de regra, acompanham suas fortunas, como a arrogância, a prepotência, a avareza, o egoísmo, a ostentação, o desperdício e tantas outras maneiras de afronta aos desafortunados.

Tornou-se célebre entre nós a afirmação do carnavalesco Joãozinho Trinta (já falecido), que disse um dia, em entrevista a um canal de televisão: “Quem gosta de miséria é intelectual. Pobre aprecia a suntuosidade e a ostentação”. Claro que ele estava certo. Isto faz parte da natureza humana. Mas é óbvio que a fortuna não deve ser o único ideal de qualquer pessoa, por pior que seja seu caráter e por mais curta que seja sua inteligência. Pois, como mortais que somos, deixaremos este mundo da mesma forma que entramos: despojados das quinquilharias que consideramos bens, sem nada, portanto, do que em vida atribuímos como sendo nossos.

Da minha parte, assim como fez o padre Antonio Vieira, entre o riso de Demócrito e o choro de Heráclito, fico com o segundo. Afinal, a ignorância é a miséria das misérias e mais, é a fonte e a causa última de toda a miserabilidade, quer a material, quer a moral e a espiritual. O poeta Mário Quintana tem um poema que ilustra a caráter essa questão, que partilho com vocês:

 Do espetáculo desta vida

“Impossível será que melhor vida exista,
enquanto o mundo assim se distribuir:
no palco a Estupidez, para ser vista,
e a Inteligência na platéia, a rir...”


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